30/05/2016

Todas as cartas

Quando somos ridículos perdemos a lucidez. Não foi o caso de Álvaro de Campos.


Todas as cartas de amor 

Todas as cartas de amor são
Ridículas.
Não seriam cartas de amor se não fossem
Ridículas.

Também escrevi em meu tempo cartas de amor,
Como as outras,
Ridículas.

As cartas de amor, se há amor,
Têm de ser
Ridículas.

Mas, afinal,
Só as criaturas que nunca escreveram
Cartas de amor
É que são
Ridículas.

Quem me dera no tempo em que escrevia
Sem dar por isso
Cartas de amor
Ridículas.

A verdade é que hoje
As minhas memórias
Dessas cartas de amor
É que são
Ridículas.

(Todas as palavras esdrúxulas,
Como os sentimentos esdrúxulos,
São naturalmente
Ridículas).
21-10-1935

 Álvaro de Campos, Poesias. Lisboa: Ática, 1944 (imp. 1993). p. 84.

28/05/2016

A recta e o ponto

A recta e o ponto esbatidos na superfície lisa


A recta e o ponto
Desenha-se uma recta numa superfície lisa.
Procura-se o ponto perdido no espaço.
Correlacionam-se os pontos e a recta
mas há um que se afasta da linha criando a desordem.

Quem tem razão?
O ponto isolado fazendo o percurso da sua lógica,
ou os pontos integrados na recta?

Omissos de ideias os pontos da recta
seguem a ordem sem questionar.
Perdido no abismo o ponto isolado
cria problemas para os quais procura respostas.

A criança desenhou um ponto
para iniciar uma flor. 
A recta era a ponte que liga todos os homens.

(A pensar em Obama em Hiroshima)

ana

24/05/2016

Som da neve e do gelo


Não é um cisne...
Parque dos Monges, Alcobaça

A chuva molhava-me o rosto
Gelado e cansado...
trecho da música de Jorge Fernandes

Som da neve e do gelo

Sem fios, uma voz ao longe emite o
som da neve e do gelo, é estalactite
que desfere o golpe
fatal:
cai o cisne ferido no chão,
as penas brancas estão rosadas
da pintura ocre do sangue...

rodopia, rodopia,
na última dança
possível.

Começa um demi plié mas retorce-se no chão.
Olha para as luzes do palco e confunde o seu brilho
com uma estrela azul, pequena, ... caída do céu.

Do céu terreno, do céu da falsa alegria,
a estrela polar, promessa de um bom destino,
cai agora por terra... e visita o rosto
gelado e cansado...

Nele rolam duas lágrimas,
chuva perdida.

ana

Das festas da escola e da adolescência (pós-25 Abril). Lembra-se Pedro?

21/05/2016

O Chapéu-de-chuva da avó...

e a rosa de uma amiga.

Só pontualmente é que gosto de chuva. Serve esse apontamento para transformar o cheiro da terra seca em terra húmida. As primeiras chuvas são belas pela novidade e pela necessidade da Terra. Todavia, a persistência do efeito torna-me melancólica. Reparei que não tenho em arquivo fotos com chuva e há belas fotos com esse cenário. Houve quem me roubasse o momento...


Ainda não tinha trazido aqui uma das bandas que ouvia na adolescência.:))

18/05/2016

O amor utopia


Johann Michael Millitz, Magnatas retratados como Adão e Eva, 1770,
Galeria, Nacional Húngara 
O amor utopia

Um tabuleiro de xadrez
sem peças...
pousado em cima da mesa.
Esquecido?
os quadrados pretos e brancos
ocupam o espaço geometricamente delicado.
É um tabuleiro isolado,
sem rei, sem rainha e sem castelo,
os cavalos e os peões desertaram;
o bispo, sábio estratega, desapareceu
não faz sentido a sua existência.
Um tabuleiro de xadrez.

Quadrados todos iguais cromaticamente
diferentes, criando um espelho difuso,
um labirinto magnético e criador
de ilusões.
Ao olhar fixamente o xadrez movimenta-se
e cria uma espiral em movimento.
Gira, gira, em movimentos concêntricos
que levam à queda
no abismo.

Movimentam-se os homens em vez das peças,
de um lado para o outro,
em linha recta,
na diagonal,
ao acaso,
sem sentido,
marionetas engendradas pelo senhor que comanda o destino.
Choram os homens o amor perdido,
o amor ilusão.
o amor utopia.

ana

O belíssimo Intermezzo de Mascagni no filme sobre a ópera Cavalleria Rusticana
 de Franco Zefirelli.
Obrigada a quem mo ofereceu.

Fotografar no Museu

No Dia Internacional dos Museus recordo a
Galeria Nacional Húngara 
a quem felicito por deixar fotografar o seu espólio. 
Nem sempre é fácil comprar os guias ou colecções dos museus. 
Podermos guardar a arte que mais nos tocou, é um privilégio.

Imra Szobotka, Nu reclinado, 1921,

"Pranto sem lágrimas" seria um título para esta tela...

Boa noite!

16/05/2016

"Spectator"


Como Spectator, eu só me interessava pela Fotografia por «sentimento»; queria aprofundá-la, não como uma questão (um tema), mas como uma ferida: vejo, sinto, portanto, reparo, olho e penso.

Roland Barthes, A câmara clara. (Tradução Manuela
Torres). Lisboa: Edições 70, 2015, p. 30.


Um dos melhores livros que li sobre fotografia e o seu conceito.




Numa interpretação mais recente


You were always on my mind
You were Always on my mind
You were Always on my mind

14/05/2016

Quando se vê a dobrar...


Sabem quantas pessoas tem havido desde o princípio do mundo até hoje? Duas. 
Desde o princípio do mundo até hoje não houve mais do que duas pessoas: uma chama-se a humanidade e a outra o indivíduo. 
Uma é toda a gente e a outra, uma pessoa só. Duas? Duas.
A mímica é uma arte só de gestos, e estes querem copiar os próprios gestos da vida. Entre o que a mímica desencantou na vida e veio depois imitar publicamente à luz artificial está o enigma do Pierrot, personagem cuja história é igual ao figurino. 
O Pierrot, todo branco, de roupas largas e quase sem feitio de vestirem um corpo humano, uma blusa pouco mais ou menos, umas calças pouco mais ou menos, e as mangas muito compridas não sabem o tamanho dos braços e passam para além das mãos, as quais não necessitam para nada de estar livres, porque o não são. Pois se não podem agarrar o que desejam! Tudo é branco, o fato como a própria cara, e a não ser o negro da calote e dos enormes botões fingidos que não servem para abotoar coisa alguma, nenhuma cor da realidade se digna a convencer-nos de que há efectivamente uma vida ali naquele retalho branco. 
E Arlequim? Com o seu maillot esticado por cima da pele, mostrando o feitio do corpo, a inquietação dos nervos, a impaciência dos músculos e o frenesim animal. O chapéu é de feltro negro mas posto com intenção. Anda sempre com uma espécie de bengala que é ao mesmo tempo o seu amigo inseparável e a sua varinha de condão, e serve também para experimentar a valentia de todas as coisas, isto é, se vão abaixo logo à primeira ou se é necessário puxar-lhe ainda com mais ganas. É difícil que Arlequim já alguma vez tenha passado despercebido em qualquer parte. 
O seu maillot é feito de trinta e sete mil pedaços de trinta e sete mil cores e que são precisamente as trinta e sete mil histórias de Arlequim, as quais todas juntas não chegam para fazer uma só. Pierrot anda sempre metido consigo e não é fácil saber quando está acordado ou a dormir. Pelo contrário, Arlequim não pára nem um momento, não pode estar quieto, e sem dúvida porque não anda satisfeito. Está sempre a magicar ideias e sempre com experimentações, e não são ideias o que falta ao Arlequim. 
Pierrot é a contemplação do próprio Desejo o qual se desenvolve, se purifica e torna-se Perfeição. É o ideal tornado Perfeição no próprio Desejo. Arlequim é a passagem autêntica do corpo por esta vida. 
Almada Negreiros, O Pierrot e o Arlequim. in Obra Completa, vol. VII, p. 51.

Será que Almada se importaria desta associação? Tiger Lillies/ Arlequim
 

11/05/2016

"sagrada ambição de não nos contentarmos com as coisas medíocres"


 



Que a nossa alma seja invadida por uma sagrada ambição de não nos contentarmos com as coisas medíocres, mas de anelarmos às mais altas, de nos esforçarmos por atingi-las, com todas as nossas energias, desde o momento em que, querendo-o, isso é possível.

Giovanni Pico Della Mirandola, Discurso sobre a dignidade do homem. Tradução e introdução de Maria de Lurdes Sirgado Ganho. Lisboa: Edições 70, 2001, p. 55.

[da dignidade do homem, às vezes esperamos mais, resta a desilusão.]


09/05/2016

Poetas religiosos


Prefácio dos Contos Exemplares, de Sophia um texto maravilhoso de D. António Ferreira Gomes, intitulado: Pórtico.

"Que o grande pecado da cultura moderna - pecado, em verdade, não original mas herdado de toda a cultura anterior, sobretudo da cultura medieval decadente - o grande pecado cultural tem sido  «usar o santo nome de Deus em vão»
(assim dizia a Cartilha, mais infelizmente esquecida ou não advertida neste ponto do que em tantos outros). Deus, fundamento de toda a Lógica ou de todo o Método para um Descartes, Deus, fundamento de toda a Ética para um Spinoza, Deus, fundamento de toda a Retórica para os pregadores e literatos barrocos, Deus fundamento de toda a política para um Cromwell, o primeiro dos ditadores modernos, isto é, de Estado totalitário (por Deus ou Contra Deus:«tanto monta, monta tanto!»), Deus enfim fundamento de tudo quanto o homem se lembra de construir a seu bel-prazer. E para mais, um deus claro e distinto, um deus mais evidente do que este pau ou esta pedra, um deus unívoco com as nossas ideias racionais e racionalistas - Verum sive intelectus, Deus sive natura, para Spinoza e para os spinozistas, que todos somos um pouco (mesmo os tomistas, quando dormitam) para quem «o primeiro artigo  de fé é um racionalismo que postula inteligibilidade de Deus e das coisas» (J. Lacroix).
E por acréscimo um deus sem Mistério nem mistérios, um deus mais claro e visível do que o sol meridiano - como se o sol  ao meio-dia nos fosse visível!... Hoje, talvez em linguagem mais culta, saborosa e rápida: Deus valor supremo e fonte de todos os valores! Esse novo equívoco que já  Nietzsche denunciava e do qual diz Heidegger com toda a razão: « O último golpe contra Deus e contra o mundo suprassensível consiste em que Deus, o existente de todo o existente, seja rebaixado à condição de valor supremo. Não porque se tenha Deus por incognoscível, não porque se demonstre que a existência de Deus é indemonstrável, se assesta o golpe mais duro em Deus, mas sim por elevar meramente a valor supremo  o Deus tido por real. E, com efeito, esse golpe não vem dos profanos que não creem em Deus, mas dos crentes e dos seus teólogos»...
Usar o santo nome de Deus em vão e caminhar-sem-Deus na vida tranquilamente não parece ser facto de hoje;  ao menos não terá hoje boa imprensa... existencialista. Sobretudo na Filosofia e na Poesia, que tantas vezes se disputam, ou entre si comutam o terreno ontológico, uma como análise, outra como criação. É bem certo que há, nesses domínios, quem continue a malbaratar o nome de Deus, apondo essa etiqueta, como os primeiros cristãos exprobravam ao paganismo, a tudo quanto se lhes antolhe, menos ao único Deus vivo e verdadeiro; não é hoje porém fenómeno próprio dos mais nem dos melhores.  Sobretudo não dos mais autenticamente religiosos. Não andaria muito longe de certa verdade Fernando Pessoa quando notava que, entre nós, os poetas religiosos não eram católicos e os poetas católicos não eram religiosos."

D. António Ferreira Gomes, Pórtico in  "Contos Exemplares" de Sophia de Mello Breiner Andresen. Porto: Porto Editora, 2013 (36ª ed), p. 13 a 15 (1ª edição em 1962)


07/05/2016

Casa vazia

Janela com janela, Alta, Coimbra



Dai-me a casa vazia e simples onde a luz é preciosa. Dai-me a beleza intensa e nua do que é frugal. Quero comer devagar e gravemente como aquele que sabe o contorno carnudo e o peso grave das coisas. 
Não quero possuir a terra mas ser um com ela. Não quero possuir nem dominar porque quero ser: esta é a necessidade.
Com veemência e fúria defendo a fidelidade ao estar terrestre. O mundo do ter perturba e paralisa e desvia em seus circuitos o estar, o viver, o ser. Dai-me a claridade daquilo que é exactamente o necessário. Dai-me a limpeza de que não haja lucro. Que a vida seja limpa de todo o luxo e de todo o lixo. Chegou o tempo da nova aliança com a vida. 

inédito sem data

continua...  (BNP)

06/05/2016

"em honra da beleza das coisas"

... E retomaram o seu caminho.

Iam de mãos dadas através do ar doirado e verde.
- Esta floresta é linda! - disse a mulher.
-É - disse o homem -, mas não encontrámos ainda a estrada.
A mulher, porém, entornou a cabeça para trás e respirou profundamente o cheiro das árvores e da terra. Estendeu a  mão no ar e na ponta dos seus dedos poisou uma borboleta.
-Ah- disse ela - mesmo perdida, vejo como tudo é perfumado e belo. Mesmo sem saber se jamais chegarei, apetece-me rir e cantar, em honra da beleza das coisas. Mesmo neste caminho que eu não sei onde leva, as árvores são verdes e frescas, como se as alimentasse uma certeza profunda. Mesmo aqui a luz poisa leve nos nossos rostos, como se nos reconhecesse. Estou cheia de medo e estou alegre. 

Sophia de Mello Breyner Andresen, Contos Exemplares. ( Ilustrações de João Catarino) Porto: Porto Editora, 2013, (36ª edição). p. 97.



Um conto angustiante e triste mas também muito belo da Sophia 

03/05/2016

Para a Graça

A beleza das coisas simples lavam a alma.

Rompia a aurora a assinalar o início do dia,
entrelaçada com o perfume da manhã,
para enaltecer os malmequeres.
                                           Colhi-os com delicadeza
 para com eles fazer uma coroa.
                                                   Não era uma coroa qualquer, 
             era uma  coroa para coroar uma amiga.

Parabéns Graça,
um dia muito feliz! :))  


01/05/2016

Mother

Fernando Botero, Maternidade, 1989.
Jardim Amália Rodrigues, Lisboa

Gaffiti de Luísa Cortesão, cortesia do Google
Mother

Mother, do you think they'll drop the bomb?
Mother, do you think they'll like this song?
Mother, do you think they'll try to break my balls?
Ooooh aah, mother, should I build the wall?

Mother, should I run for president?
Mother, should I trust the government?
Mother, will they put me in the firing line?
Ooooh aah, is it just a waste of time?

Hush now, baby, baby, don't you cry
Mama's gonna make all of your nightmares come true
Mama's gonna put all of her fears into you
Mama's gonna keep you right here under her wing
She won't let you fly but she might let you sing
Mama's gonna keep baby cosy and warm

Ooooh, babe, ooooh, babe, ooooh, babe
Of course Mama's gonna help build the wall

Mother, do you think she's good enough?
Mother, do you think she's dangerous?
Mother, will she tear your little boy apart?
Oooh aah, mother, will she break my heart?

Hush now, baby, baby, don't you cry
Mama's gonna check out all your girlfriends for you
Mama won't let anyone dirty get through
Mama's gonna wait up till you get in
Mama will always find out where you've been
Mamma's gonna keep baby healthy and clean

Ooooh, babe, ooooh, babe, ooooh, babe
You'll always be a baby to me

Mother, didn't need to be so high

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