09/08/2008

Das coisas simples, um olhar de Almada Negreiros

A Flor

"Je travaille tant que je peux et le mieux que je peux, toute la journée. Je donne toute ma mesure, tous mes moyens. Et après, si ce que j'ai fait n'est pas bon, je n'en suis plus responsable; c'est que je ne peux vraiment pas faire mieux".
Henri Matisse


Pede-se a uma criança: Desenhe uma flor! Dá-se-lhe papel e lápis. A criança vai sentar-se no outro canto da sala onde não há mais ninguém.
Passado algum tempo o papel está cheio de linhas. Umas numa direcção , outras noutras; umas mais carregadas, outras mais leves; umas mais fáceis, outras mais custosas. A criança quis tanta força em certas linhas que o papel quase que não resistiu.
Outras eram tão delicadas que apenas o peso do lápis já era de mais.
Depois a criança vem mostrar essas linhas às pessoas: uma flor!
As pessoas não acham parecidas estas linhas com as de uma flor!
Contudo, a palavra flor andou por dentro da criança, da cabeça para o coração e do coração para a cabeça, à procura das linhas com que se faz uma flor, e a criança pôs no papel algumas dessas linhas, ou todas. Talvez as tivesse posto fora dos seus lugares, mas são aquelas as linhas com que Deus faz uma flor!

A INVENÇÃO DO DIA CLARO, LIRICAS PORTUGUESAS, PORTUGÁLIA EDITORA, LISBOA, P. 95

Luva Branca

(Poderia arrumar em prosa a poesia deste conto.
Apeteceu-me alinhar em verso a prosa dele)

O meu gato está velho,
tem dezoito anos.
Deixou a um canto
há muito
o seu novelo de trapos.
Ele tem frio,
tem frio nas suas luvas brancas.
Luvas brancas, sim, luvas brancas,
porque ele é fidalgo
o meu gato.
Mas agora está cansado e velho,
tem dezoito anos.
Ali está, a um canto,
o seu novelo de trapos.
O ratão clássico da fábula
é agora único
e todo-poderoso
senhor das águas-furtadas.
Já lá vai o tempo
-só de lembrar estremece-
em que temia a luva branca
(luva branca de fidalgo,
não esqueçais)
do meu gato.

O meu gato tem frio,
frio nas suas luvas brancas.
A custo pulou para a cadeira
onde costuma dormir a tarde inteira
e lá ficou que tempos
a filosofar.
Porque o meu gato
está velho
e com velhice
tornou-se filósofo.
Pensa muito, creio bem,
no calor de um raio de sol,
do sol que ele outrora desprezava
quando corria
-que ridículo!-
atrás do novelo de farrapos.
O deus do meu gato é o sol.
Porque pensaram também os homens
que o sol é que era Deus?
Deixai o sol ser o deus dos gatos
e procurai
o deus que aquece as almas.
O sol é o deus do meu gato,
mas às vezes,
quando não há sol,
ele põe-se a filosofar
sobre o calor
dos meu joelhos...
e assaltam-no então
tão sérias dúvidas!

O meu gato
está velho
filósofo
tem dezoito anos
e frio nas suas luvas brancas.
Veio ter comigo.
Digo-lhe:
"Pede a um raio de sol
que te aqueça".
Há um fio de sol,
um pobre doirado fio de sol
que coa pelo vidro partido
e vai cair
num degrau da escada.
Ali se enroscou
o meu gato.
Mas, quando o raio de sol
fugiu,
veio a correr
pedir calor
aos meus Joelhos.

Fernando Campos

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