Sabem quantas pessoas tem havido desde o princípio do mundo
até hoje? Duas.
Desde o princípio do mundo até hoje não houve
mais do que duas pessoas: uma chama-se a humanidade e a outra
o indivíduo.
Uma é toda a gente e a outra, uma pessoa só.
Duas?
Duas.
A mímica é uma arte só de gestos, e estes querem copiar os
próprios gestos da vida.
Entre o que a mímica desencantou na vida e veio depois imitar
publicamente à luz artificial está o enigma do Pierrot, personagem
cuja história é igual ao figurino.
O Pierrot, todo branco, de roupas largas e quase sem feitio de
vestirem um corpo humano, uma blusa pouco mais ou menos,
umas calças pouco mais ou menos, e as mangas muito compridas
não sabem o tamanho dos braços e passam para além das mãos, as
quais não necessitam para nada de estar livres, porque o não são.
Pois se não podem agarrar o que desejam!
Tudo é branco, o fato como a própria cara, e a não ser o negro da
calote e dos enormes botões fingidos que não servem para abotoar
coisa alguma, nenhuma cor da realidade se digna a convencer-nos
de que há efectivamente uma vida ali naquele retalho branco.
E Arlequim? Com o seu maillot esticado por cima da pele,
mostrando o feitio do corpo, a inquietação dos nervos, a
impaciência dos músculos e o frenesim animal.
O chapéu é de feltro negro mas posto com intenção.
Anda sempre com uma espécie de bengala que é ao mesmo tempo
o seu amigo inseparável e a sua varinha de condão, e serve
também para experimentar a valentia de todas as coisas, isto é, se
vão abaixo logo à primeira ou se é necessário puxar-lhe ainda
com mais ganas.
É difícil que Arlequim já alguma vez tenha passado despercebido
em qualquer parte.
O seu maillot é feito de trinta e sete mil pedaços de trinta e sete
mil cores e que são precisamente as trinta e sete mil histórias de
Arlequim, as quais todas juntas não chegam para fazer uma só.
Pierrot anda sempre metido consigo e não é fácil saber quando
está acordado ou a dormir.
Pelo contrário, Arlequim não pára nem um momento, não pode
estar quieto, e sem dúvida porque não anda satisfeito. Está sempre
a magicar ideias e sempre com experimentações, e não são ideias
o que falta ao Arlequim.
Pierrot é a contemplação do próprio Desejo o qual se desenvolve,
se purifica e torna-se Perfeição. É o ideal tornado Perfeição no
próprio Desejo.
Arlequim é a passagem autêntica do corpo por esta vida.
Almada Negreiros, O Pierrot e o Arlequim. in Obra Completa, vol. VII, p. 51.
Será que Almada se importaria desta associação? Tiger Lillies/ Arlequim