19/06/2010

A Infância. A adolescência...o sótão

Viagem pelas memórias. O sótão da minha infância está aqui retratado neste belíssimo trecho de Ondina Braga.
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Bonecas Egípcias, Museu Britânico, Londres

Londres, 2009
A infância. A adolescência.
Diz Rainer Maria Rilke: «Então vivemos tudo porque éramos imaturos: eu penso que experimentámos o horror em cheio (não sabíamos que era horror) e a alegria também (não sabíamos que havia tal coisa, era demasiado rica para os nossos corações) e talvez o amor total».
O sótão da velha casa tinha encantos únicos entre a poeira dos anos e o lixo dos objectos sem uso que para lá se arrumavam. Tão baixo o tecto da telha vã que era preciso dobrar o corpo para chegar ao fundo. Estremecíamos do rumor dos ratos, de terror, das sombras. Os cabelos toucados de teias de aranha. o coração pequenino. No pensamento, arrepiantes, os casos de espiritismo das conversas do Brasil.
E as trouxas dos farrapos com blusas de faille à moda o século passado? Se as vestíamos, rangiam a cada movimento como se vestíssemos papel. Raposas de pêlo traçado e melancólicos olhinhos de vidro. Luvas de pele de porco com botões frios de madrepérola.
Faziam-se bonecas de meias de seda, a cara redonda, rija de moinha.
Nos baús, os retratos. muito antigos, os das avós, bisavós, tios e tias da mãe.

Maria Ondina Braga, Estátua de Sal, Lisboa: Editor José A. Ribeiro, 1983, p.69.

8 comentários:

  1. Tambem tenho memorias assim ;-) No sotao da minha avo materna, havia baus com roupas da adolescencia da minha mae e da minha tia ("do tempo de solteiras"). O sotao tinha tres divisoes, uma das quais tinha o tecto rebaixado, e sim, teias de aranha que brilhavam com a luz da claraboia. Era la que guardava a minha bicicleta dos meus seis anos. Na divisao maior, estava o meu berco ;-)
    Beijinhos, Ana e bom fim-de-semana!
    Gostei das bonecas e do texto ;-)

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  2. O texto de Ma.Ondina Braga e o poder encantatório de sua prosa nimbada de poesia, sonhos, e o que lhe dita a alma, a solidão.

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  3. Presépio no Canal,
    Obrigada pela sua visita. Os sótãos das minhas avós eram também rebaixados, tinham baús e malas, com roupa que eu, as minhas irmãs e amigas vestiamos nas brincadeiras; com objectos;fotografias; alguns livros, os que não eram de edições boas (seja lá o que isso for); o meu berço e da família...

    Só não está escrito uma das coisas que uma das avós fazia e que era pendurar cachos de uvas de mesa que vinham da quinta e guardava até ao Natal.
    As suas memórias levaram-me às minhas. :)
    Bom sábado. :))

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  4. Caro Anónimo,
    Obrigada pela sua visita e tem razão: a prosa dela tem "o poder encatatório nimbado de poesia".
    Verbalizou bem aquilo que penso e que a prosa de Maria Ondina Braga me faz sentir.

    Pensar e sentir com uma clarividência por vezes perturbadora. :)

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  5. Este é um belo livro, aliás como todos os que já li desta autora. Ainda bem que também gostou. Nunca será demais divulgar a boa escrita, infelizmente pouco lembrada hoje em dia. E há muito mais que sonhos e solidão na prosa da Maria Ondina Braga...

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  6. c.a.,
    Muito obrigada pela sua visita. Vou ver se descubro o que há para além da poesia, do sonho e da solidão em Maria Ondina Braga. :)

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  7. Nas minhas memórias de infância não há sótãos, mas também roupas antigas de uma tia-avó. Lembro-me dos sapatos de cetim (?) preto e de raposas com olhos brilhantes (hoje em dia não conseguiria pô-las ao pescoço). são das melhores lembranças que tenho de criança aquelas que passei no quarto dessa tia, que também tinha um violino (que ela de vez em quando tocava), um candeeiro de cristal que projectava as cores do arco-íris e um livro com a história de Santa Teresa do Menino Jesus.

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  8. Margarida,
    Muito obrigada por ter partilhado essas memórias tão bonitas.
    Na casa das duas avós havia um piano, e numa delas um acordeão e uma guitarra que proporcionaram alguns serões engraçados.
    Gosto muito de violino mas ninguém na minha família tocava esse belo instrumento.
    Pois, nos sótãos das duas avós não havia lustres mas havia aranhas...

    Sempre achei graça aos lustres por causa do que contou, reflectem a cor do arco-íris.
    Bom domingo e graças pela sua companhia. :)

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