30/09/2017

Janela de vão de escada

Janela de vão de escada


Não basta abrir a janela


Não basta abrir a janela
Para ver os campos e o rio.
Não é bastante não ser cego
Para ver as árvores e as flores.
É preciso também não ter filosofia nenhuma.
Com filosofia não há árvores: há ideias apenas.
Há só cada um de nós, como uma cave.
Há só uma janela fechada, e todo o mundo lá fora;
E um sonho do que se poderia ver se a janela se abrisse,
Que nunca é o que se vê quando se abre a janela.

4-1923


Alberto Caeiro, “Poemas Inconjuntos”. Fernando Pessoa. (Nota explicativa e notas de João Gaspar Simões e Luiz de Montalvor.) Lisboa: Ática, 1946 (10ª ed. 1993), p.75.

1ª publ. in “Poemas Inconjuntos”. In Athena, nº 5. Lisboa: Fev. 1925.


27/09/2017

Red Tower

Para Majo,

O meu estado de espírito, 



daí não visitar os blogues amigos e andar distante.

Giorgio De Chirico, The Red Tower, 1913, Guggenheim, New York 
Giorgio de Chirico, The Red Tower, 1913. Oil on canvas, 28 15/16 x 39 5/8 inches (73.5 x 100.5 cm)

23/09/2017

A Chave


A chave, ela existe mas para quê?






A CHAVE

E de repente
o resumo de tudo é uma chave.
A chave de uma porta que não abre
para o interior desabitado
no solo que inexiste,
mas a chave existe.
Aperto-a duramente
para ela sentir que estou sentindo
sua força de chave.
O ferro emerge de fazenda submersa.
Que valem escrituras de transferência de domínio
se tenho nas mãos a chave-fazenda
com todos os seus bois e os seus cavalos
e suas éguas e aguadas e abantesmas?
Se tenho nas mãos barbudos proprietários oitocentistas
de que ninguém fala mais, e se falasse
era para dizer: os Antigos?
(Sorrio pensando: somos os Modernos
provisórios, a-históricos…)
Os Antigos passeiam nos meus dedos.
Eles são os meus dedos substitutos
Ou os verdadeiros?
Posso sentir o cheiro do suor dos guarda-mores,
o perfume- Paris das fazendeiras no domingo de missa.
Posso, não. Devo.
Sou devedor do meu passado,
cobrado pela chave.
Que sentido tem a água represada
no espaço onde as estacas do curral
concentram o aboio do crepúsculo?
Onde a casa vige?
Quem dissolve o existido, eternamente
existindo na chave?
O menor grão de café
derrama nesta chave o cafezal.
A porta principal, esta é que abre
sem fechadura e gesto.
Abre para o imenso.
Vai-me empurrando e revelando
o que não sei de mim e está nos Outros.
O serralheiro não sabia
o ato de criação como é potente
e na coisa criada se prolonga,
ressoante.
Escuto a voz da chave, canavial,
uva espremida, berne de bezerro,
esperança de chuva, flor de milho,
o grilo, o sapo, a madrugada, a carta,
a mudez desatada na linguagem
que só a terra fala ao fino ouvido.
E aperto, aperto-a, e de apertá-la,
ela se entranha em mim. Corre nas veias.
É dentro em nós que as coisas são,
ferro em brasa – o ferro de uma chave.



Carlos Drummond de Andrade, O Corpo. ( Itabira, 1902 – Rio de Janeiro, 1987)

   A ópera Diva Dance contou com música da ópera de Gaetano Donizetti Lucia di Lammermoor: "Il dolce suono (1ª parte) e a parte dois intitulou-se The Diva Dance.

16/09/2017

In Memoriam João MS!

LIBERDADE

(...)
Sou livre, sou livre...
Sinto-me limitado e impotente.
Não durmo nem sonho.
Queria ser livre para amar 
loucamente.
Aqui, sinto-me asfixiar,
estou incapaz, estou louco
Queria gritar até se ouvir
A minha voz nos céus: sou livre! Estou louco.

João Mattos e Silva, Sem Contorno. Lisboa: Edições Excelsior, 1968, p. 51.


Júlio Pomar para o levar na sua viagem, João.


Ao fim da tarde - a pergunta

Ao fim da tarde, já com a luz do candeeiro


A PERGUNTA

«Ora diz-me», assim falou um dia
A um poeta alguém duro, insensível,
«Se tivesses de optar entre ver morta —
Tua mulher, a quem tanto querias —
E a perda total, irreversível,
De teus versos todos, dela em troca —
Qual das perdas tu mais sentirias?»

O poeta olhou surpreso, em dor
E desgostoso, o interlocutor,
Cuja pergunta sem cabimento
Quebrou seu íntimo recolhimento,
Sem responder; sorriu o outro então
Como se fora seu mais velho irmão:
A percepção do sentido atento
Ao súbito, intenso conhecimento
Da nova consciência que o apanhara,
Foi mais amargo do que imaginara.
Mais, do que um sorriso, violento.


Alexander Search, Lisboa: Assírio & Alvim, edição e tradução de Luisa Freire, 1999


Agradeço ao João Menéres que me enviou por e-mail a Carmen (no gelo). Nunca tinha visto e adorei.

11/09/2017

Regresso à infância

Imagem relacionada
Ilustrações de José A. Cambraia, 2ª edição do livro em Portugal, 1971


As leituras de férias já voaram. Agora, talvez, porque regressar ao trabalho custa; pensamos sempre, não podemos ficar mais um bocadinho?...
Então decidi re-re-reler um livro de infância. Um livro da grande Senhora Enid Blyton, "Uma Casa da Árvore Oca". 
Escusado será dizer que o gosto com que o leio é o mesmo de outrora.
Não é um livro para a menina ou para o menino, é um livro para jovens, com a idade escolar da 4ª classe, no passado, do 2º ciclo, no presente. Ele desperta a curiosidade, a interpretação, a moral, a justiça, o afecto, a camaradagem e as vicissitudes do ambiente social que nem sempre é o mais favorável. 
Já aqui foi focado quando a Cláudia Ribeiro, da Lumière, mo arranjou.

Blyton era genial!

Todavia, também o trouxe a pensar num amigo que hoje faz anos, que leu alguns títulos que eu li porque todos os pais ou amigos ofereciam os livros da Colecção Azul, ou os livros da Enid Blyton...

Parabéns, João Mattos e Silva!
Tenha um dia feliz.

Fazer anos é também fazer uma viagem à infância.

Nunca tive uma casa na árvore, o mais semelhante, foi ter um navio realizado com cadeiras e um sofá, na casa da avó. Acreditem que as viagens eram fantásticas.




09/09/2017

Outra face do Brasil


Cada vez mais  eu escrevo 
com menos palavras. Meu livro
melhor acontecerá quando
eu de todo não escrever.

Clarice Lispector in

Exposição: Clarice Lispector, Na Hora da Estrela, Fundação Calouste Gulbenkian, 2009




05/09/2017

Classe Latina

Dr. Atl. (Gerardo Murillo), Dama com Vulcões, 1944

Resultado de imagem para dr atl

http://www.artnet.com/artists/dr-atl-gerardo-murillo/past-auction-results/5

"A Cruz Vermelha mexicana enviou uma equipa de voluntários para Dallas, no Texas, com o objetivo de ajudar os norte-americanos a fazer face à devastação provocada pelo furacão Harvey. Uma oferta prontamente aceite pelo governador do Texas, Greg Abbott..." 
Euronews

Não sou boa a fixar ditados populares, mas lá que o México deu uma "bofetada com luva de pelica" ao Senhor Trump, deu.

Não há dúvida que os latinos hão-de sobreviver a todas as intempéries.

Podemos (latinos) não ser ricos mas somos umas ricas pessoas.


Intermezzo composto pelo mexicano Manuel María Ponce Cuéllar 

03/09/2017

Centauro atormentado por uma Ménade

Centauro atormentado por uma Ménade, 1770-1778
pintura de óleo em seda, Real Academia de Bellas Artes de San Fernando, Madrid



A maldade feminina ou a ferida protectora?
O amor ou o ódio?
O que transmite esta pintura?


02/09/2017

Desastre nas coisas mais simples



Nunca são as coisas mais simples
que aparecem quando as esperamos.
...O que é mais simples,
como o amor, ou o mais evidente dos sorrisos,
não se encontra no curso previsível da vida.
Porém, se nos distraímos do calendário,
ou se o acaso dos passos
nos empurrou para fora do caminho habitual,
então as coisas são outras.
Nada do que se espera
transforma o que somos se não for isso:
um desvio no olhar;
ou a mão que se demora no teu ombro,
forçando uma aproximação
dos lábios.


Nuno Júdice, As Coisas Mais Simples, Lisboa: D. Quixote, 2006.


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