A chave, ela existe mas para quê?
A CHAVE
E de repente
o resumo de tudo é uma chave.
A chave de uma porta que não abre
para o interior desabitado
no solo que inexiste,
mas a chave existe.
Aperto-a duramente
para ela sentir que estou sentindo
sua força de chave.
O ferro emerge de fazenda submersa.
Que valem escrituras de transferência de domínio
se tenho nas mãos a chave-fazenda
com todos os seus bois e os seus cavalos
e suas éguas e aguadas e abantesmas?
Se tenho nas mãos barbudos proprietários oitocentistas
de que ninguém fala mais, e se falasse
era para dizer: os Antigos?
(Sorrio pensando: somos os Modernos
provisórios, a-históricos…)
Os Antigos passeiam nos meus dedos.
Eles são os meus dedos substitutos
Ou os verdadeiros?
Posso sentir o cheiro do suor dos guarda-mores,
o perfume- Paris das fazendeiras no domingo de missa.
Posso, não. Devo.
Sou devedor do meu passado,
cobrado pela chave.
Que sentido tem a água represada
no espaço onde as estacas do curral
concentram o aboio do crepúsculo?
Onde a casa vige?
Quem dissolve o existido, eternamente
existindo na chave?
O menor grão de café
derrama nesta chave o cafezal.
A porta principal, esta é que abre
sem fechadura e gesto.
Abre para o imenso.
Vai-me empurrando e revelando
o que não sei de mim e está nos Outros.
O serralheiro não sabia
o ato de criação como é potente
e na coisa criada se prolonga,
ressoante.
Escuto a voz da chave, canavial,
uva espremida, berne de bezerro,
esperança de chuva, flor de milho,
o grilo, o sapo, a madrugada, a carta,
a mudez desatada na linguagem
que só a terra fala ao fino ouvido.
E aperto, aperto-a, e de apertá-la,
ela se entranha em mim. Corre nas veias.
É dentro em nós que as coisas são,
ferro em brasa – o ferro de uma chave.
Carlos Drummond de Andrade, O Corpo. ( Itabira, 1902 – Rio de Janeiro, 1987)
A ópera Diva Dance contou com música da ópera de Gaetano Donizetti Lucia di Lammermoor: "Il dolce suono (1ª parte) e a parte dois intitulou-se The Diva Dance.
Tão bonito este poema de ter na chave um mundo por abrir. Mesmo quando ele já não existe fica na chave tudo o que foi. Aprecio este poeta.
ResponderEliminarTambém o aprecio.
EliminarBoa noite. :))
Adorei o poema. Gosto muito de chaves, mas ainda assim nunca tinha pensado numa chave como «Sou devedor do meu passado, cobrado pela chave.» Muitos beijinhos e obrigada!
ResponderEliminarMargarida,
EliminarEste poema é muito bonito. Esta chave está pendurada num suporte barroco porque é um tesouro.:))
Beijinho.
Chave num jogo de sombras. Abre, não abre? É a chave solução para quem a tem?
ResponderEliminarImagem bonita.
O poema-chave "se entranha em mim".
Bj.
É bonito e estranho, sim.
EliminarBejinho, Agostinho. :))
Há portas isentas de chaves
ResponderEliminarMA,
Eliminare essas são as melhores. :))
Bj.
As chaves só existem para abrir o que está fechado.
ResponderEliminarBeijinhos, boa semana
Pois é. :))
EliminarBeijinho, Pedro.
A chave da fazenda de seus pais que a mineradora
ResponderEliminarde ferro de Itabira expropiou, ocupou e destruiu...
Se a Ana frequentasse mais o meu blogue, conhecia
este episódio...
Beijos.
~~~
Majo,
EliminarNão tenho andado pela blogo-esfera. Estou a viver uma rotina nova à qual ainda não me adaptei, daí estar mais ausente.
Sinto necessidade de uma torre, compreende?
Beijinhos. :))
Maravilha :)
ResponderEliminarObrigada.
ResponderEliminarBj. :))
Belíssimo o poema!
ResponderEliminarO pior é quando as chaves não abrem o que deveriam abrir...
beijinho
Beijinho, Graça.:))
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