Nesta quadra que vivemos talvez possamos ser mais humanos.
Fiama Hasse Pais Brandão, fotografia do blogue Assírio e Alvim. Michel Montaigne, cortesia do Google
CANTO DO HUMANO
O que me deu Montaigne? Deu-me o livro
Biblioteca de Montaigne (1571)
em que diz que nada me é estranho, Nas vigas do tecto estão máximas em grego
quando o território seu de cada dia
era toda a geografia percorrida.
Em Paris nada lhe é estranho,
presumivelmente os gatos vesgos,
o lixo citadino as valas expostas
para os moribundos das variadas pestes.
Todo o divino lhe tinha sido dado
a pouco e pouco pelas gerações
de antecessores filósofos, e Montaigne
sobraçando os livros contemplou o Nada
que não lhe era estranho. Pelos olhos
todo o devir visível lhe apareceu
talvez ainda tão carnalmente
como o meu olhar que me esvazia.
Antes de Montaigne os olhos viam
a cena do mundo como alheia
e a tudo e todos o grande Cordeiro
sustinha na sua compaixão.
Talvez o mito da cidade caótica
com os vapores de vício e luxúria
seja a última alucinação romântica
do imaginário público. Canto
os novos mensageiros herméticos
que nos unem pelo pensamento.
Aceito esta cidade humana
excessivamente trémula e imprecisa
que se espelha no Rio, que nunca pára
desde que lhe chamaram Tejo os poetas
loquazes que no-lo imaginaram.
Porém canto a doença que é a face
completa da saúde e canto
a morte de Montaigne, à qual não foi alheio,
como ele decerto soube de antemão,
e a nossa que não é já necessária.
Que a morte novamente, as dores, fadigas
nos pertençam com os seus opostos,
como nos pertence o espaço interestelar
que nos estava simultâneo e aberto
sem que Montaigne ainda o soubesse.
31/12/93
Fiama Hasse Pais Brandão,
Cantos do Canto. Lisboa: Relógio d'Água, 1995, p. 22-23.
Foto Wikipedia
Obrigada Cláudia por me ter arranjado o livro.