17/05/2015

Descascando ...

Descascando a cebola, com a arte de interpretar o que vai no íntimo da alma humana, o elo solitário e comum de uma nação e de circunstâncias únicas e inequívocas. Uma curva na estrada, uma viagem constante ao passado, um ajuste de contas... 

Descascando lentamente,
a casca fina, veios que se fragmentam,
na história trágica e humana:
lágrimas... pérolas perdidas.
A verdade, nua e crua, confessa
  a dignidade consumada. 

Assim vejo e sinto o livro de Günter Grass, a quem vi algumas vezes no Centro Cultural de S. Lourenço, em Almancil, no Algarve.
Jacob Collins, Green Onions, Still life, 2004 daqui




A cebola tem muitas camadas. Existem em maioria. Mal é descascada, renova-se. Cortada, provoca lágrimas. Só ao descascá-la fala verdade. (...)

Uma palavra puxa a outra, Sculden e Schuld, dívidas e culpa. Duas palavras tão próximas uma da outra, tão firmemente enraizadas no solo féril da língua alemã, apesar de se conseguir  resolver a primeira, atenuando-a, através de pagamento - nem que seja em prestações, como fazia a clientela da minha mãe que comprava a fiado -, a culpa, porém, tanto a comprovável como a escondida, ou aquela que apenas se suspeita, essa fica. Faz tiquetaque sem parar, e mesmo nas viagens a nenhures lá está  ela no seu lugar, à espera. Recita a sua pequena sentença, não teme repetições, faz-se esquecer,  por longos períodos, magnânima, e hiberna em sonhos. Permanece como sedimento, não pode ser removida como uma mancha, sorvida como uma poça. Aprendeu desde cedo a procurat refúgio, confessada na concha de um ouvido, a tornar-se mais pequena do que pequena, num nada, fazendo-se passar por prescrita ou há muito perdoada, mas está afinal, assim que a cebola desaparece camada, após camada, inscrita nas camadas mais novas: às vezes  com letras maiúsculas, outras como frase subordinada ou nota de rodapé, às vezes é claramente legível, outras ainda aparece em hieróglifos que, quando muito, podem ser decifradas  a custo.

Günter Grass, Descascando a cebola. Autobiografia 1939-1959. Cruz-Quebrada: Casa das Letras, 2007,p. 11 e 33.


"Pagliacci" de Leoncavallo, Placido Domingo, versão do filme de Franco Zeffirelli, 1981.

18 comentários:

  1. Interessante. Como se consegue descobrir poesia numa cebola. Beijinhos!

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    1. É verdade, Margarida.
      Günter Grass é que me levou a descobrir.
      Beijinhos. :))

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  2. ~~~
    ~ Embora faça chorar, o livro é tão trágico como a ópera «Pagliacci»?!

    ~~~~ Dias muito agradáveis e felizes. ~~~~~~~~~~~~~~~~
    ~~~~~~~~~~~~~~~~~~~~~~~~~~~~~~~~~~~~~

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    1. Majo,
      Ainda estou a meio do livro. Como o trabalho aperta leio mais devagar. Também estou a saborear a lucidez de quem se confronta com verdades que doem.
      O desfecho dos "Palhaços" é bem mais triste.
      Beijinho. :))

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    2. ~~~ Beijinho. ~~~
      ~ Boa semana. ~
      ~~~~~~~~~~~~~

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  3. Nunca li nada dele, mas tenho vários livros. Tenho este, mas por enquanto vai ficar em lista de espera.

    Gosto da pintura das cebolas...

    Boa semana, Ana; estamos na recta final !
    Beijinhos:)

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    1. Gostei muito de ler a Caixa.
      Tenho tanto trabalho, Isabel.
      Beijinhos e uma boa semana. :))

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  4. Não li o livro...mas gostei imenso das cebolas!!! Beijinhos

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    1. :)) Obrigada, Maria João.

      É um livro interessante. Recomendo-o.
      Beijinhos. :))

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  5. Gunter Grass está em lista de espera para ser lido proximamente.
    Vesti la giuba é, hoje e sempre, a minha ária favorita.
    Mas prefiro ouvir e ver Pavarotti a cantá-la.
    Arrepia!!
    Beijinhos, boa semana

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    1. Pedro,
      Também prefiro a interpretação de Pavarotti.
      No entanto, esta também foi para mim especial.
      Beijinho.:))

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  6. Ana,
    A propósito das camadas de cebola, e embora em diferente contexto, não resisto a deixar-lhe um texto que escrevi há tempo. Espero que me perdoe a ousadia.

    Lembras-te, meu amor, daquela música? Sorríamos quando a ouvíamos, ainda sorrimos, apesar de sabermos que não existe a tal canção, ela apenas faz cócegas nalgumas das muitas camadas com que vamos adornando a compreensão das coisas.
    Já falámos disso tantas vezes e continuamos a falar. Umas ao final da tarde, a olhar para a multifiguração dos tons alaranjados, outras à lareira, aconchego ancestral tecido em partilha, em pequenas confidências. Esculpimos, no soprar do mais fino pó, que cada pessoa vai acumulando, ao longo da vida, camadas e mais camadas de segredos, ligados por pequenos filamentos, que são a complexa estrutura, quase invisível, do seu edifício.
    Disseste-me, às tantas, que não te querias limitar à descoberta das tuas camadas, querias ousar descobrir as minhas e as tuas, onde convergiam ou se despediam.
    Sentias que, na concordância, o meu sorriso era espontâneo. Também eu te queria dar as mãos.

    Um beijinho :)

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    1. AC,
      Que bonito é o seu texto.
      Obrigada por ter partilhado. Um dia destes destaco-o.
      Um beijinho.:))

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  7. Ce-bo-la faz chorar mas é remédio para o coração. Chorar por camadas até chegar ao âmago cura. Será por isso mesmo? O GG era uma génio.
    As fotografias não fazem chorar, muito menos envergonhar. Parabéns, Ana.

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  8. Obrigada, Agostinho.
    Grass era mesmo um génio.
    As fotos não ficaram bem como eu queria.

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