Descascando a cebola, com a arte de interpretar o que vai no íntimo da alma humana, o elo solitário e comum de uma nação e de circunstâncias únicas e inequívocas. Uma curva na estrada, uma viagem constante ao passado, um ajuste de contas...
Descascando lentamente,
a casca fina, veios que se fragmentam,
na história trágica e humana:
lágrimas... pérolas perdidas.
A verdade, nua e crua, confessa
a dignidade consumada.
Assim vejo e sinto o livro de Günter Grass, a quem vi algumas vezes no Centro Cultural de S. Lourenço, em Almancil, no Algarve.
Jacob Collins, Green Onions, Still life, 2004 daqui
A cebola tem muitas camadas. Existem em maioria. Mal é descascada, renova-se. Cortada, provoca lágrimas. Só ao descascá-la fala verdade. (...)
Uma palavra puxa a outra, Sculden e Schuld, dívidas e culpa. Duas palavras tão próximas uma da outra, tão firmemente enraizadas no solo féril da língua alemã, apesar de se conseguir resolver a primeira, atenuando-a, através de pagamento - nem que seja em prestações, como fazia a clientela da minha mãe que comprava a fiado -, a culpa, porém, tanto a comprovável como a escondida, ou aquela que apenas se suspeita, essa fica. Faz tiquetaque sem parar, e mesmo nas viagens a nenhures lá está ela no seu lugar, à espera. Recita a sua pequena sentença, não teme repetições, faz-se esquecer, por longos períodos, magnânima, e hiberna em sonhos. Permanece como sedimento, não pode ser removida como uma mancha, sorvida como uma poça. Aprendeu desde cedo a procurat refúgio, confessada na concha de um ouvido, a tornar-se mais pequena do que pequena, num nada, fazendo-se passar por prescrita ou há muito perdoada, mas está afinal, assim que a cebola desaparece camada, após camada, inscrita nas camadas mais novas: às vezes com letras maiúsculas, outras como frase subordinada ou nota de rodapé, às vezes é claramente legível, outras ainda aparece em hieróglifos que, quando muito, podem ser decifradas a custo.
Günter Grass, Descascando a cebola. Autobiografia 1939-1959. Cruz-Quebrada: Casa das Letras, 2007,p. 11 e 33.
"Pagliacci" de Leoncavallo, Placido Domingo, versão do filme de Franco Zeffirelli, 1981.
Interessante. Como se consegue descobrir poesia numa cebola. Beijinhos!
ResponderEliminarÉ verdade, Margarida.
EliminarGünter Grass é que me levou a descobrir.
Beijinhos. :))
~~~
ResponderEliminar~ Embora faça chorar, o livro é tão trágico como a ópera «Pagliacci»?!
~~~~ Dias muito agradáveis e felizes. ~~~~~~~~~~~~~~~~
~~~~~~~~~~~~~~~~~~~~~~~~~~~~~~~~~~~~~
Majo,
EliminarAinda estou a meio do livro. Como o trabalho aperta leio mais devagar. Também estou a saborear a lucidez de quem se confronta com verdades que doem.
O desfecho dos "Palhaços" é bem mais triste.
Beijinho. :))
~~~ Beijinho. ~~~
Eliminar~ Boa semana. ~
~~~~~~~~~~~~~
:))
EliminarBeijinho.:))
Nunca li nada dele, mas tenho vários livros. Tenho este, mas por enquanto vai ficar em lista de espera.
ResponderEliminarGosto da pintura das cebolas...
Boa semana, Ana; estamos na recta final !
Beijinhos:)
Gostei muito de ler a Caixa.
EliminarTenho tanto trabalho, Isabel.
Beijinhos e uma boa semana. :))
Não li o livro...mas gostei imenso das cebolas!!! Beijinhos
ResponderEliminar:)) Obrigada, Maria João.
EliminarÉ um livro interessante. Recomendo-o.
Beijinhos. :))
A imagem lá de cima é FANTÁSTICA !
ResponderEliminarObrigada, João.
EliminarBeijinho.:))
Gunter Grass está em lista de espera para ser lido proximamente.
ResponderEliminarVesti la giuba é, hoje e sempre, a minha ária favorita.
Mas prefiro ouvir e ver Pavarotti a cantá-la.
Arrepia!!
Beijinhos, boa semana
Pedro,
EliminarTambém prefiro a interpretação de Pavarotti.
No entanto, esta também foi para mim especial.
Beijinho.:))
Ana,
ResponderEliminarA propósito das camadas de cebola, e embora em diferente contexto, não resisto a deixar-lhe um texto que escrevi há tempo. Espero que me perdoe a ousadia.
Lembras-te, meu amor, daquela música? Sorríamos quando a ouvíamos, ainda sorrimos, apesar de sabermos que não existe a tal canção, ela apenas faz cócegas nalgumas das muitas camadas com que vamos adornando a compreensão das coisas.
Já falámos disso tantas vezes e continuamos a falar. Umas ao final da tarde, a olhar para a multifiguração dos tons alaranjados, outras à lareira, aconchego ancestral tecido em partilha, em pequenas confidências. Esculpimos, no soprar do mais fino pó, que cada pessoa vai acumulando, ao longo da vida, camadas e mais camadas de segredos, ligados por pequenos filamentos, que são a complexa estrutura, quase invisível, do seu edifício.
Disseste-me, às tantas, que não te querias limitar à descoberta das tuas camadas, querias ousar descobrir as minhas e as tuas, onde convergiam ou se despediam.
Sentias que, na concordância, o meu sorriso era espontâneo. Também eu te queria dar as mãos.
Um beijinho :)
AC,
EliminarQue bonito é o seu texto.
Obrigada por ter partilhado. Um dia destes destaco-o.
Um beijinho.:))
Ce-bo-la faz chorar mas é remédio para o coração. Chorar por camadas até chegar ao âmago cura. Será por isso mesmo? O GG era uma génio.
ResponderEliminarAs fotografias não fazem chorar, muito menos envergonhar. Parabéns, Ana.
Obrigada, Agostinho.
ResponderEliminarGrass era mesmo um génio.
As fotos não ficaram bem como eu queria.