O Manual da Pintura e da Caligrafia de José Saramago é uma interessante abordagem ao jogo de espelhos barroco. A duplicidade entre o "eu" retratado e o "eu" real, ou como o pintor o vê, espanta o leitor. É um belo exercício entre a escrita e a pintura. É uma metáfora entre a realidade intrínseca do eu e o eu como deseja ser visto. A personagem principal chama-se S. O livro é uma viagem ao interior de nós mesmos, usando a linguagem comparativa entre a escrita e a pintura. Está a ser uma boa surpresa ler este livro.
O ilustrador húngaro, István Orosz, na mesma linha de Escher, aborda a realidade ilusória que liga tão bem, a meu ver, com o Manual de Saramago. Ou seja, é a simbiose perfeita entre o "eu interior e o "eu" retratado que se vê da janela.
Tenho dois retratos em dois cavaletes diferentes, cada um em sua sala, aberto o primeiro à naturalidade de quem entra, fechado o segundo no segredo da minha tentativa frustrada, e estas folhas de papel que são outra tentativa, para que vou de mãos nuas, sem tintas, nem pincéis, apenas com esta caligrafia, este fio negro que se enrola e desenrola, que se detém em pontos e vírgulas, que respira dentro de pequenas clareiras brancas e logo avança sinuosa, como se percorresse o labirinto de Creta ou os intestinos de S. (interessante: esta última comparação veio sem que eu a esperasse ou provocasse. Enquanto a primeira não passou de uma banal reminiscência clássica, a segunda, pelo insólito, dá-me algumas esperanças: na verdade, pouco significaria se eu dissesse que tento devassar o espírito, a alma, o coração, o cérebro de S. : as tripas são outra espécie de segredo.) E tal como já disse logo na primeira página, andarei de sala em sala, de cavalete em cavalete, mas sempre virei dar a esta pequena mesa, a esta luz, a esta caligrafia, a este fio que constantemente se parte e ato debaixo da caneta e que, não obstante, é a minha única possibilidade de salvação e de conhecimento.
José Saramago, Manual de Pintura e Caligrafia, Lisboa: Caminho, 2006 (6ª edição), p. 45-46.
No dia em que os homens puderem apreciar a beleza pela beleza, apreciar a harmonia dumas cores justapostas, duns sons que se sucedem, é porque estarão libertos dos problemas vitais que hoje não podemos ignorar.
Não sei se será possível. O homem está a progredir em inteligência e a perder a emotividade. Dizem-nos os behaviouristas. Quando chegarmos a essa época já o homem não terá sensibilidade para apreciar a arte, seja ela pura ou não...
Augusto Abelaira, A Cidade das Flores, Lisboa: Betrand, 1972, p. 254-255.
Noa fez parte duma caminhada que ainda não terminou. Todavia, chegou um tempo, nesta jornada, em que as escarpas se tornaram menores e o Sol começa a brilhar timidamente.
Timidez não é necessariamente mau, pois é a consciência de como o universo é tão grande e nós tão pequenos.
Casa dos Bicos, uma excelente recuperação do edifício
Perspectiva dos Bicos
Do Memorial do Convento uma frase para a viagem de Saramago
Biblioteca
Sala de exposição com as obras e os principais aspectos da vida literária de Saramago
Títulos, fotografias e documentos diversos
Um poema na contracapa do caderno de apontamentos ilustrado com uma pintura da filha de Saramago, Violante Saramago Matos. Têm o bom gosto das páginas não possuírem linhas. Podemos colocar pensamentos, guardar flores e fazer desenhos.
Como eu gostava que a minha rosa crescesse assim... (animação revisitada)
Para além da curva da estrada
Talvez haja um poço, e talvez um castelo,
E talvez apenas a continuação da estrada.
Não sei nem pergunto.
Enquanto vou na estrada antes da curva
Só olho para a estrada antes da curva,
Porque não posso ver senão a estrada antes da curva.
De nada me serviria estar olhando para outro lado
E para aquilo que não vejo.
Importemo-nos apenas com o lugar onde estamos.
Há beleza bastante em estar aqui e não noutra parte qualquer.
Se há alguém para além da curva da estrada,
Esses que se preocupem com o que há para além da curva da estrada.
Essa é que é a estrada para eles.
Se nós tivermos que chegar lá, quando lá chegarmos saberemos.
Por ora só sabemos que lá não estamos.
Aqui há só a estrada antes da curva, e antes da curva
Há a estrada sem curva nenhuma.
s.d.
Alberto Caeiro, Poemas Inconjuntos, (Recolha, transcrição e notas de Teresa Sobral Cunha.) Lisboa: Presença, 1994, p. 129.
Ramon Casas (1866-1932), Jove decadeant (Després del ball). Oli sobre tela, 46,5 x 56 cm, 1899. Museu de Monserrat, Abadia de Monserrat, Espanha
Conheci esta tela através da capa do livro de Pamuk, O Romancista Ingénuo e o Sentimental. Um livro que comecei a ler ontem, após me ser oferecido.
1. O que se passa na nossa cabeça quando lemos romances
Os romances são vidas segundas, vidas paralelas às nossas. Como os sonhos de que fala o poeta francês Gérard de Nerval, os romances revelam o colorido e as complexidades das nossas vidas e estão cheios de gente, rostos e objetos que pensamos reconhecer. Tal como nos sonhos, quando estamos a ler romances somos, por vezes, tão fortemente atingidos pela natureza extraordinária das coisas com que nos deparamos que chegamos a esquecer onde estamos e vemo-nos no meio do acontecimento e pessoas imaginárias que se nos apresentam pela frente. Nessas alturas, sentimos que o mundo ficcional com que deparamos e a que nos encarregamos com entusiasmo é mais real do que o próprio mundo da realidade quotidiana. Que essa vida paralela, essa vida segunda possa parecer-nos mais real do que a realidade significa frequentemente que substituímos a realidade pelos romances, ou pelo menos confundimos a realidade do romance com a vida real. Mas nunca nos queixamos, nunca nos arrependemos dessa ilusão, dessa ingenuidade. Pelo contrário, como quando temos certos sonhos, queremos que o romance que estamos a ler continue e esperamos que essa vida paralela provoque em nós um sentido sólido, consistente da realidade e da autenticidade.
Orhan Pamuk, O Romancista Ingénuo e o Sentimental, Barcarena: Editorial Presença,(trad. de Álvaro Manuel Machado) 2012, p. 11.
Sandro Botticelli, Detalhe de Vénus e Marte, c. 1485, The National Gallery, Londres
Sorri um pouco, sorri. Na perene juventude do teu imaginar. Flor aérea que para sempre te ficou. Lembra devagar o teu sorriso de outrora no teu deslumbramento. E sê feliz.
Vergílio Ferreira, Pensar, Lisboa: Bertrand, (7ª edição), 2004, p. 152
Paolo Ucello, Battagliaa di San Romano, Bernardino Della Ciarda, Detail 1, 1450s, Galleria Deggli Uffizi, Florença
Durante a guerra os homens têm sentimentos generosos,ideais profundos;quando a paz vem, apodrecem, perdem a sinceridade, tornam-se estúpidos, conservadores... Às vezes penso que uma guerra nos revelaria o que há em nós de generoso e de puro, nos revelaria que todos somos irmãos, nós e os inimigos.
Augusto Abelaira, A Cidade das Flores, Lisboa: Bertrand, 1972, (4ª edição), p. 36.
Em que medida é a escrita de Abelaira contemporânea? Estaremos a apodrecer?
Com especial agradecimento a Cláudia Ribeiro da Livraria Lumière.
Angeles Chorale, UCLA Coral, UCLA Filarmónica, maestro Donald Neuen,
Anush Avetisyan (Leonora), soprano, 2011
Royce Hall, UCLA - Verdi "A Força do destino"
De manhã temendo que me achasses feia, acordei tremendo deitada na areia, mas logo os teus olhos disseram que não e o sol penetrou no meu coração.
Vi depois, numa rocha, uma cruz, e o teu barco negro dançava na luz; vi teu braço acenando, entre as velas já soltas. Dizem as velhas da praia que não voltas... São loucas! São loucas!
Eu sei, meu amor, que nem chegaste a partir, pois tudo em meu redor me diz que estás sempre comigo.
No vento que lança areia nos vidros, na água que canta, no fogo mortiço, no calor do leito, nos bancos vazios, dentro do meu peito estás sempre comigo.
David Mourão-Ferreira
Poema escrito em 1954 para Amália Rodrigues cantar no filme francês "Les Amants du Tage" filmado em Lisboa. (cortesia do google)
Em diálogo com a Isabel do blogue Palavras Daqui e Dali cheguei a Pollock.
Jackson Pollock, Homem nu,
c. 1938-41
No deserto político em que vivemos, escolhi o Homem nu por causa da fragilidade da exposição e do despojo material, ... quiçá à procura do homem espiritual. (10 de Junho, Dia de Portugal... )
Rêve
A la tombée du jour, je me rends à son appartement où pourtant je sais qu'elle n'est pas.
Le pigeon est plumé, vidé...cuit!
Le petit chat en or a perdu ses yeux verts.
Le pommier d'amour de ma mère meurt.
L'oiseaux triste a usé sa voix sa vie.
Maurice Roche, «Action writing», in Jackson Pollock, Paris. Centre Georges Pompidu, 1982, p. 152. As imagens são retiradas do Catálogo sobre uma exposição do pintor no Centre Georges Pompidu, Paris.
Capa do catálogo: Jackson Pollock, Centre Georges Pompidou
Pollock morreu aos 44 anos num acidente de automóvel.
Action painting foi como se chamou esta fase da sua pintura e a que o tornou mais célebre.
Saliento esta pintura Pássaro (c. 1938-41)
Bordado de Castelo Branco, o primeiro que tenho.
Obrigada Isabel. A partilha levou-me a revisitar Pollock. :)
Vídeo enviado para o youtube por ajaflair em 16/02/2010. Lamentavelmente não me recordo de quem é a música que o acompanha e foi uma das razões que me levou a escolhê-lo.
Biblioteca da Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa
The Fantastic Flying Books of Mr. Morris Lessmore publiquei no Prosimetron a 25 de Julho de 2011.
Com a cortesia do Youtube onde foi retirada a informação. Enviado para o Youtube por patjekees em 31/01/2012.
«Inspired, in equal measures, by Hurricane Katrina, Buster Keaton, The Wizard of Oz, and a love for books, "Morris Lessmore" is a story of people who devote their lives to books and books who return the favor. Morris Lessmore is a poignant, humorous allegory about the curative powers of story. Using a variety of techniques (miniatures, computer animation, 2D animation) award winning author/ illustrator William Joyce and Co-director Brandon Oldenburg present a new narrative experience that harkens back to silent films and M-G-M Technicolor musicals.
"Morris Lessmore" is old fashioned and cutting edge at the same time."The Fantastic Flying Books of Mr. Morris Lessmore" is one of five animated short films that will be considered for outstanding film achievements of 2011 in the 84th Academy Awards ®.»
«Sim, a arte esclarece-nos sobre o significado de uma época, é o ponto terminal da sua expressão. Mas neste jogo do ovo e da galinha, como saber quem começou? A arte apura a água que a vida lhe forneceu e depois há-de beber - escrevi um dia».
On a tous besoin de croire que quelque chose existe au delà de la banalité du quotidien. Être capable de se transformer en quelque chose de mieux, même si personne ne croit en vous. *
Neverland, James Barrie.
J.M.
Barrie: Neverland. It's a wonderful place... I've not spoken about this before to anyone- ever.*
As bolas de sabão que esta criança Vasco Berardo, s/ título, Se entretém a largar de uma palhinha
São translucidamente uma filosofia toda.
Claras, inúteis e passageiras como a Natureza,
Amigas dos olhos como as coisas,
São aquilo que são
Com uma precisão redondinha e aérea,
E ninguém, nem mesmo a criança que as deixa,
Pretende que elas são mais do que parecem ser.
Algumas mal se vêem no ar lúcido.
São como a brisa que passa e mal toca nas flores
E que só sabemos que passa
Porque qualquer coisa se aligeira em nós
E aceita tudo mais nitidamente.
11-3-1914
Alberto Caeiro, in “O Guardador de Rebanhos”,(Nota explicativa e notas de João Gaspar Simões e Luiz de Montalvor) Lisboa: Ática, (10ª ed.)1993, p. 51
Uma contradição difícil de explicar no dia consagrado à criança.