05/08/2016

O livro coluna vertebral

Num passeio à livraria de Miguel de Carvalho, com a Graça, conversou-se, viram-se livros e arte. Após essa viagem o Miguel Carvalho presenteou-nos com uma pequena brochura escrita por si, um pequeno ensaio sobre o livro-objecto.
O conceito estético da realização da brochura é bastante original e interessante. A capa é feita de radiografias por isso cada livrinho é um exemplar, per si, personalizado. A mim calhou-me uma coluna vertebral. Tal simbologia assoberbou por completo o meu sentido estético e literário.
A escrita de Miguel Carvalho não é fácil, ou não houvera escolhido Cesariny, mas é escorreita, e de lógica em lógica leva-nos ao propósito a que se propôs, o lugar do livro-objecto da poesia nos nossos dias.

A capa do meu livrinho

Começa com uma citação de Cesariny, na Pena Capital (1957)

«... o livro-objecto não se situa do lado do criador, nem do lado do observador/leitor (muito menos do lado dos marchands). Situa-se a meu entender, do lado da poesia adimensional, no espaço e no tempo de um verbo, entre a sua nascença e a sua ruína, como uma manifestação da resposta à questão cujo eco é o vazio que não o suporta. E a sua ocultação pela sociedade tem como equivalente o silêncio e o desprezo nos quais se encontram mergulhados toda a produção poética autêntica. [...]
Estes objectos poéticos reduzem-se à linguagem que lhes confere o poder que têm de nos impregnar com paisagens interiores e todo o seu interesse reside também e ainda mais além. São objectos inclassificáveis, que não "falam" uma linguagem universal mas comunicam duma forma particular que nada tem a ver com as esculturas e as assemblages tradicionais, suscitando "exaltações recíprocas" duma mise en scéne própria invasora do observador. No domínio do visível, o prazer do olhar, não obedece ao mesmo imperativo que no domínio do legível. A estética não está nos livros-objectos na ordem do logos, isto é, a título de exemplo; a sensação que nos é proporcionada pela contemplação de um quadro ou escultura, não é provocada  pelo respeito duma regra semelhante àquela que rege um escrito. Mas a fusão dos dois sustenta-se de "beleza convulsiva" que tais objectos encerram...»

Para mim esta análise interessa-me como visão da arte: a palavra ou a imagem, qual delas tem mais força? 
Vi um filme interessante que intersecciona as duas perspectivas.
Não há dúvida que na arte da escrita e, em particular da poesia, o aspecto psicológico é muito importante, isto é, o estado de alma, a abertura para, conta muito para a absorção da poesia. O mundo actual é o mundo da imagem, esta mais facilmente conquista o observador.
Não obstante, a palavra e a imagem cruzarem-se em planos e regras diferentes, elas têm a mesma finalidade: apaixonar e embelezar a vida.

Agradeço ao Miguel o livrinho e à Graça e ao Miguel a companhia matinal.

Words and Pictures, foca a questão abordada de uma forma mais leve; é um filme realizado por Fred Schepisi com a participação de Clive Owen e Juliette Binoche

9 comentários:

  1. Respostas
    1. Obrigada, Margarida.
      Um beijinho e bom fim-de-semana!:))

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  2. Olá, Ana!
    Igualmente agradeço a companhia e a tua boa disposição. Foi um bom momento de partilha artística!
    Ainda não li o livrinho, dediquei-me em primeiro lugar a ler o livro de poesia do Miguel com o título "Neste Estabelecimento Não Há Lugares Sentados".
    Quanto à radiografia, calharam-me em sorte umas ancas, representativas da fertilidade, quiçá poética...
    Obrigada pelo trailer
    beijinhos

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    1. Graça,
      Ando a ler literatura religiosa do século XVI, ainda não li o livro de poesia, mas em breve o farei.
      Fertilidade poética parece-me bem. :))
      Beijinho.

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  3. Que interessante!
    Deve ter sido uma manhã estimulante a nível da "palavra", com três bons conversadores (suponho), já que pessoalmente só conheço uma conversadora.

    É um conceito diferente, uma capa feita de radiografia!

    A imagem tem um primeiro impacto mais forte, mas a palavra diz muitas vezes o que a imagem não consegue ou não pode mostrar e acrescenta à imagem o sentimento que ela pode despertar. A imagem ou a palavra?...

    Gostava muito de ver esse filme, que já vi aqui referido na blogosfera, mas ainda não calhou aparecer-me à frente, nem no cinema, nem em vídeo, nem na TV. Gosto muito da Juliette Binoche e vejo todos os filmes dela, sempre que tenho oportunidade.

    Um beijinho e um bom fim-de-semana:)

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    1. Isabel,
      Sim, foi muito interessante. O conceito é extremamente original.
      Vale a pena ver o filme. Já o tinha trazido aqui, esta é uma repetição mas tinha que o meter com o texto que li. A questão é difícil de resolver não é?
      Um beijinho e bom fim-de-semana!:))

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  4. O prazer de ler um texto conduz-nos muitas vezes a imagens que formamos transportando-nos até essa paisagem onde desejamos permanecer para sempre: Combray de Proust ou a Alexandria de Durrell. Mas por vezes ao sermos confrontados com uma imagem que nos fascina, como um desses quadros de Magritte que povoam o imaginário, sentimos o prazer do texto ou o desejo de criar um novo vocabulário para esse mesmo quadro que nos fascina.
    A poesia possui muitas vezes esse condão de pintar de forma subtil as imagens na tela.
    Não conheço o filme do Fred Schepisi, mas como gosto deste cineasta australiano, adoro os actores e o tema é por demais aliciante, já tomei nota para descobrir o filme.Obrigado e bom fim-de-semana.

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    1. Mr Vertigo,
      É verdade que a descrição de Combray, ou da Alexandria de Durrel nos transportam para locais paradisíacos que, possivelmente, não são exactamente a realidade. A nossa imaginação é despertada pelas palavras de diferentes maneiras. Li o "Quarteto de Alexandria" há alguns anos, distantes já, não sei se mereceriam uma releitura, tal como "Em Busca do Tempo Perdido" que infelizmente só li os dois primeiros volumes... os outros ficaram perdidos no tempo... nem sei porquê. O seu comentário fez-me reflectir sobre este tema e a importância do texto, neste caso, prosa.
      Sim, a poesia pode pintar imagens na tela mas às vezes há telas que nos deixam sem palavras...
      Já aqui trouxe o filme de Fred Schepisi na altura em que o vi. Não podia deixar de o fazer pois o tema, o poder da palavra ou o poder da imagem, tocou-me.
      Um bom fim-de-semana!:))

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  5. Boa tarde, Ana.
    Vim aqui há dias e fiquei deliciado com a prosa, contente, se assim o posso dizer, pelo trabalho que elaborou a proposito do livro do seu amigo Miguel de Carvalho, que pensei: isto merece ser comentado. Tinha feito a leitura num smartfone minúsculo e queria fazê-lo no pc. Entretanto o meu portátil foi vítima (por mão alheia) de um acidente que me custou perto de 400 páginas da minha lavra - sem cópia de segurança - : fiquei fulo, depois amarelo e agora estou verde porque há dúvidas na possibilidade de recuperação do tesouro perdido. Estou de nojo, pois.

    Boas férias.

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