Do mais íntimo e profundo olhar é assim que defino a escrita de Valter Hugo Mãe.
O romance: "O filho de mil homens".provoca um regresso ao sótão, às memórias recônditas de todo o ser humano.
Imbuída neste espírito fui à arca de memórias procurar e, apesar das teias, encontrei num velho vinil o cantor que penetra no livro.
Peter Gabriel
O livro começa com a história de Crisóstomo que pediu à natureza que lhe desse um filho.
[...] sentindo-se estranho mas aliviado, ouviu o mar de sempre, o vento muito ameno passando, e reparou outra vez em como o céu estava estrelado e as traineiras saíam. Tinha de seguir para trabalhar. Levantou-se, sacudiu a areia e quase se riu. Se era verdade que se sentia um homem só com metade de tudo, também era verdade que uma parte da sua dor ficara ali, como se um saco se esvaziasse. A areia haveria de a fazer deslizar até ao mar e o mar lavaria tudo. Acontecia assim porque, aos quarenta anos, o Crisóstomo assumiu a tristeza para reclamar a esperança.
A natureza, quieta a ser só inteligente e quieta, não disse nada, nem o Crisóstomo esperaria ouvir uma voz. A esperança era uma coisa muda e feita para ser um pouco secreta.
[...]
O homem que chegou aos quarenta anos sorriu, e pela primeira vez em toda a sua vida abraçou um colega de trabalho. O rapaz pequeno não soube o que pensar. Depois, enquanto preparavam as redes, o pescador perguntou-lhe se não gostava da escola, se não gostava de estudar. E o rapaz disse que sim, que até era bom a matemática. O pescador pensou que o seu filho seria uma raridade das boas, porque ninguém percebia de matemática, só os génios. O Crisóstomo, uns segundos antes de o dizer, pensou que aquele era o seu filho e pensou que o seu filho era um génio. E assim o pensaria de qualquer maneira, uma vez que amar fazia dessas grandezas. Amar era feito para ser uma demasia e uma maravilha.
Valter Hugo Mãe, O filho de mil homens. Carnaxide: Editora Objectiva, 2011, pp.20, 21, 22.
Na contracapa do livro vem uma "máxima" interessante que me chegou realçada pela mão amiga que me ofereceu o livro.
« ... para se ser feliz é preciso aceitar ser o que se pode, nunca deixando contudo de acreditar que é possível estar e ser sempre melhor. »
Obrigada!
Agradeço também a R que me despertou o interesse.
Estou a ler este livro com uma velocidade apreciável porque ele absorve todas as atenções. Usando uma metáfora: o livro assemelha-se a uma laranja perfumada que nos alicia e ao saboreá-la encontramos a agrura do citrino que depois se torna doce.
Apesar da canção: Book of Love não estar no álbum fotografado, esta música que Peter Gabriel cantou no filme Shall we dance? (2004) é a que melhor se associa ao livro. Foi escrita pelo compositor Stephin Merritt em 1999.