14/05/2016

Quando se vê a dobrar...


Sabem quantas pessoas tem havido desde o princípio do mundo até hoje? Duas. 
Desde o princípio do mundo até hoje não houve mais do que duas pessoas: uma chama-se a humanidade e a outra o indivíduo. 
Uma é toda a gente e a outra, uma pessoa só. Duas? Duas.
A mímica é uma arte só de gestos, e estes querem copiar os próprios gestos da vida. Entre o que a mímica desencantou na vida e veio depois imitar publicamente à luz artificial está o enigma do Pierrot, personagem cuja história é igual ao figurino. 
O Pierrot, todo branco, de roupas largas e quase sem feitio de vestirem um corpo humano, uma blusa pouco mais ou menos, umas calças pouco mais ou menos, e as mangas muito compridas não sabem o tamanho dos braços e passam para além das mãos, as quais não necessitam para nada de estar livres, porque o não são. Pois se não podem agarrar o que desejam! Tudo é branco, o fato como a própria cara, e a não ser o negro da calote e dos enormes botões fingidos que não servem para abotoar coisa alguma, nenhuma cor da realidade se digna a convencer-nos de que há efectivamente uma vida ali naquele retalho branco. 
E Arlequim? Com o seu maillot esticado por cima da pele, mostrando o feitio do corpo, a inquietação dos nervos, a impaciência dos músculos e o frenesim animal. O chapéu é de feltro negro mas posto com intenção. Anda sempre com uma espécie de bengala que é ao mesmo tempo o seu amigo inseparável e a sua varinha de condão, e serve também para experimentar a valentia de todas as coisas, isto é, se vão abaixo logo à primeira ou se é necessário puxar-lhe ainda com mais ganas. É difícil que Arlequim já alguma vez tenha passado despercebido em qualquer parte. 
O seu maillot é feito de trinta e sete mil pedaços de trinta e sete mil cores e que são precisamente as trinta e sete mil histórias de Arlequim, as quais todas juntas não chegam para fazer uma só. Pierrot anda sempre metido consigo e não é fácil saber quando está acordado ou a dormir. Pelo contrário, Arlequim não pára nem um momento, não pode estar quieto, e sem dúvida porque não anda satisfeito. Está sempre a magicar ideias e sempre com experimentações, e não são ideias o que falta ao Arlequim. 
Pierrot é a contemplação do próprio Desejo o qual se desenvolve, se purifica e torna-se Perfeição. É o ideal tornado Perfeição no próprio Desejo. Arlequim é a passagem autêntica do corpo por esta vida. 
Almada Negreiros, O Pierrot e o Arlequim. in Obra Completa, vol. VII, p. 51.

Será que Almada se importaria desta associação? Tiger Lillies/ Arlequim
 

22 comentários:

  1. Respostas
    1. Obrigada, João.
      Era o que se andava a beber cá em casa. Gosto muito de vinhos alentejanos. Hoje ao jantar foi um Cartuxa EA.
      Beijinho.:))

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  2. Interessante, o texto de Almada. Beijinhos!

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  3. Nunca li esta obra de Almada Negreiros!
    Interessante excerto!
    Um beijinho, Ana.:))

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    1. Cláudia,
      É uma peça de teatro e é muito bonita.
      Beijinho.:))

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  4. ~~~
    Nunca aconteceu-me meditar seriamente sobre o perfil psicológico
    de Pierrot e Arlequim...

    Afinal,
    é a opinião de um esteta nato, das artes plásticas e das letras...

    ~~~ Beijinhos, Ana. ~~~
    ~~~~~~~~~~~~~~~~~~~~~~~

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    1. Almada era fantástico.
      Gosto imenso dos seus trabalhos quer na escrita quer nas artes.
      Beijinho.:))

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  5. Lindo texto! Ele escrevia muito bem! Ver a dobrar...pode ser bom! mas pode ser um pesadelo ....
    Beijinhos Ana!

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    1. Maria João,
      Acho-o um génio. Uma vez por festa não deve fazer mal.:))
      Beijinho.:))

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  6. Ver em dobro não é natural. Mas quando se é Almada e escreve e pinta tão unicamente...é génio, não é visão dobrada. Quando muito, o génio desdobra.

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    1. Bea,
      Era um génio. Um verdadeiro futurista.
      Boa semana!:))

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  7. Há coisas na vida que dão prazer, por exemplo, ver, ler, ouvir, falar, tocar... cheirar, beber!!!!
    A sedução do copo de saltos altos projectada sobre a mesa. Que distinção, que elegância!
    Penso. Almada decorreu perante um copo assim.
    Bom domingo, Ana.

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    1. Obrigada, Agostinho.
      Julgo que Almada também devia apreciar o vinho alentejano, sim.
      Terá servido de inspiração.
      Boa semana. :))

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  8. Um Homem tão completo, o nosso Almada!
    Contudo, e tanto quanto me parece, tão ingrata e injustamente, já não digo totalmente esquecido mas, ainda assim tão pouco lembrado.
    Não esqueçamos os Grandes, se não queremos ficar mais pobres.

    Boa semana, Ana.
    Beijinho.

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  9. Este comentário foi removido pelo autor.

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