09/05/2016

Poetas religiosos


Prefácio dos Contos Exemplares, de Sophia um texto maravilhoso de D. António Ferreira Gomes, intitulado: Pórtico.

"Que o grande pecado da cultura moderna - pecado, em verdade, não original mas herdado de toda a cultura anterior, sobretudo da cultura medieval decadente - o grande pecado cultural tem sido  «usar o santo nome de Deus em vão»
(assim dizia a Cartilha, mais infelizmente esquecida ou não advertida neste ponto do que em tantos outros). Deus, fundamento de toda a Lógica ou de todo o Método para um Descartes, Deus, fundamento de toda a Ética para um Spinoza, Deus, fundamento de toda a Retórica para os pregadores e literatos barrocos, Deus fundamento de toda a política para um Cromwell, o primeiro dos ditadores modernos, isto é, de Estado totalitário (por Deus ou Contra Deus:«tanto monta, monta tanto!»), Deus enfim fundamento de tudo quanto o homem se lembra de construir a seu bel-prazer. E para mais, um deus claro e distinto, um deus mais evidente do que este pau ou esta pedra, um deus unívoco com as nossas ideias racionais e racionalistas - Verum sive intelectus, Deus sive natura, para Spinoza e para os spinozistas, que todos somos um pouco (mesmo os tomistas, quando dormitam) para quem «o primeiro artigo  de fé é um racionalismo que postula inteligibilidade de Deus e das coisas» (J. Lacroix).
E por acréscimo um deus sem Mistério nem mistérios, um deus mais claro e visível do que o sol meridiano - como se o sol  ao meio-dia nos fosse visível!... Hoje, talvez em linguagem mais culta, saborosa e rápida: Deus valor supremo e fonte de todos os valores! Esse novo equívoco que já  Nietzsche denunciava e do qual diz Heidegger com toda a razão: « O último golpe contra Deus e contra o mundo suprassensível consiste em que Deus, o existente de todo o existente, seja rebaixado à condição de valor supremo. Não porque se tenha Deus por incognoscível, não porque se demonstre que a existência de Deus é indemonstrável, se assesta o golpe mais duro em Deus, mas sim por elevar meramente a valor supremo  o Deus tido por real. E, com efeito, esse golpe não vem dos profanos que não creem em Deus, mas dos crentes e dos seus teólogos»...
Usar o santo nome de Deus em vão e caminhar-sem-Deus na vida tranquilamente não parece ser facto de hoje;  ao menos não terá hoje boa imprensa... existencialista. Sobretudo na Filosofia e na Poesia, que tantas vezes se disputam, ou entre si comutam o terreno ontológico, uma como análise, outra como criação. É bem certo que há, nesses domínios, quem continue a malbaratar o nome de Deus, apondo essa etiqueta, como os primeiros cristãos exprobravam ao paganismo, a tudo quanto se lhes antolhe, menos ao único Deus vivo e verdadeiro; não é hoje porém fenómeno próprio dos mais nem dos melhores.  Sobretudo não dos mais autenticamente religiosos. Não andaria muito longe de certa verdade Fernando Pessoa quando notava que, entre nós, os poetas religiosos não eram católicos e os poetas católicos não eram religiosos."

D. António Ferreira Gomes, Pórtico in  "Contos Exemplares" de Sophia de Mello Breiner Andresen. Porto: Porto Editora, 2013 (36ª ed), p. 13 a 15 (1ª edição em 1962)


18 comentários:

  1. Interessante a cisão dos poetas entre religião e catolicismo. Mas acontece que, independente do que digam, não gosto de prólogos compridos. Quase sempre são um desvio da obra para o que o autor do prólogo pretende passar. Ora, em meu entender, a poesia que consta do livro é tudo que há a passar. E quem queira teorizar, faça-o em lugar próprio e deixe-a ali, no livro, a acontecer sem mais.
    Mas isto sou eu a quem os prólogos extensos aborrecem, sejam ou não de qualidade.

    Andreas Scholl tem a exacta tonalidade vocal que admiro. A minha amiga dilecta procurou-o para mim. Há um qualquer coisa nessa voz andrógina que me agrada demais. E não exagera os decibéis.

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    1. Bea,
      Os Contos Exemplares trouxe-os da Biblioteca para ler, não os possuo. Como tal, o registo do "Pórtico" ou prefácio ao livro de Sophia, por parte de D. António Ferreira Gomes, julgo tenha sido convidado pela autora, é de tal beleza que o guardei desta forma. Não o tenho na íntegra mas registei umas passagens. Qual a melhor maneira de o guardar? Certamente, esta é uma delas. D. António G. Ferreira também já não está entre nós e esta é também uma maneira de o homenagear pois soube ler tão bem a alma de Sophia.
      Boa noite. :))

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    1. Este registo não vai ter muita interacção pois não é fácil o texto. Contudo, o bispo soube tão bem ligar a escrita espiritual e religiosa de Sophia com a religião que professou.
      Beijinho. :))

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  3. Ofereceram-me Os Contos Exemplares há muitos anos, quando era bem novinha e lembro-me bem de alguns deles. O Retrato de Mónica é brilhante!
    Na minha edição penso que não existe este prefácio, ou então escapou-me, dada a idade...é uma boa reflexão, no meu entender, mas é um texto para mastigar, para ser bem entendido! E, sim, ele tem razão, os poetas malbaratam o nome de Deus (contra mim falo), por não haver prova científica da sua existência...mas fazem-no brincando com a verdade apenas, porque a poesia brinca com a realidade, não procura a verdade...essa é uma missão da filosofia!
    Obrigada Ana, por permitires, com as tuas publicações, estas reflexões!
    A foto está excelente e bem enquadrada!
    beijinho :)

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    1. Interessante a sua reflexão. é uma perspectiva poética em que não tinha pensado, a de brincar com a verdade ou a ideia dela. Para mim os poetas são sérios, seres privilegiados quais pítias, no acesso a essa verdade, de que a filosofia é eterna caminheira. A poesia toca sem explicar o que a razão porfia sem alcançar (bolas, rimei).

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    2. Graça,
      É de facto brilhante, mas o que gostei mais foi da "Viagem". O prefácio é belo e julgo que a ideia é do bispo é demonstrar a profundidade dos textos poéticos de Sophia que são acutilantes e reveladores de uma moral. Moral que se aproxima de todo o espírito religioso (crente ou não) que se associa à Filosofia e à ética. Não pretende que seja a procura da verdade, neste caso, mas uma crítica à hipocrisia e aos falsos bons costumes, como os da Mónica.
      Beijinhos. :))

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    3. Leia-se da seguinte forma:
      O prefácio é belo e julgo que a ideia do bispo é demonstrar a profundidade. Ou seja está um é a mais.

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    4. Eu li sem o "é", percebi logo que era engano :)
      Afinal a minha edição tem o prefácio, era como eu dizia, devido à tenra idade, não lhe prestei grande atenção na altura...
      Tens razão na tua análise, Ana!
      Agradeço à Bea as suas palavras e que continue a rimar :)
      beijinhos

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  4. Mesmo sem uma filiação
    todos somos
    sociais políticos poetas e religiosos

    é sempre bom viajar por aqui

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    1. Mar Arável,
      Sem dúvida. Aqui havia muito de esclarecido.
      Obrigada. :))
      Boa noite.

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  5. Interessantíssimo. O Bispo foi um homem de elevada craveira intelectual que só poderia escrever o prólogo, certamente a pedido da Sophia, como o fez. É um texto complexo mas que vale a pena "estudar"; Mas, não diminui a autora, de modo nenhum: a estatura da Poeta é enorme.

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    1. Nunca diminuem o autor. Se são bons, criam estatuto próprio; se maus, igual mas no sentido inverso.
      Sophia não precisa de achegas, basta-se a si mesma na arte mais pura da palavra. Mas concordo, ela quis e aprovou o prefácio. Também concordo na erudição crítica e sapiente do bispo. E mantenho o resto que é, afinal, a minha opinião. Quem é a Mónica que finge bons costumes?!

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  6. Concordo, Agostinho.
    Este bispo era especial e viveu num tempo conturbado.
    Bom dia!:))

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