29/02/2016

O MAR É ANTERIOR ÀS MONTANHAS

O mar estava gélido e frio, mas o vento forte que trazia lavou-me a alma e quem me levou foi a minha amiga Graça. Obrigada.
O MAR É ANTERIOR 
ÀS MONTANHAS 
e antes das máquinas as máquinas não eram necessárias. Os rios
desceram depois os caudais da memória e teceram o rigor dos seus
próprios percursos. E as árvores

nas margens

emergiram da nostalgia do tempo mais antigo, desse tempo anterior às
montanhas. Da cinza dos vulcões onde assentaram raízes resgataram o 
fogo e estenderam a sombra para proteger as coisas

mais frágeis.

Na inicial indefinição as aves enunciaram a melodia da voz e a direção
do vento. Estabeleceram depois os limites do céu um pouco acima dos
últimos ramos. Outros animais

na sua imprudência

desenharam e apagaram vezes sem conta as fronteiras entre a terra 
e a água. Descobriram a prata líquida do abraço e procuraram o ouro na
saliva dos beijos. Vezes sem conta inventaram o amor porque antes do
amor

o amor

não era necessário. Os homens construíram moinhos e trabalharam
cachimbos, escreveram o pão os sonhos e multiplicaram as candeias.
Queimaram-se no fogo do amor depois tatuaram o fogo

da palavra amor

e perderam-se nas montanhas em labirínticas viagens sem fim. Na
nostalgia do tempo mais antigo, desse tempo anterior às viagens,
esculpiram a pedra nos cumes mais altos. Mas mesmo querendo 
negá-lo as pedras sempre sublinharam as fronteiras

que retalham o mundo.

E os homens  ergueram então a primeira casa a partir da mesma
nostalgia rasgaram janelas nas paredes do corpo. Através desses
toscos rasgos aprenderam com os rios: na foz

reencontraram a nascente.

Das árvores onde repousa o vento aprenderam que é da terra e água
que é feito o fogo dos frutos. O mar é anterior às montanhas e antes
das máquinas as máquinas não eram necessárias: as máquinas

tal como o amor

nasceram da nostalgia do tempo mais antigo, desse tempo anterior à
fome e aos sonhos e ao trilho de todas as viagens.

Rui Miguel Fragas, O Rumor das Máquinas. [IV Prémio Literário Saldónio Gomes, 2015) Aveiro:Universidade de Aveiro Editora, 2015, p. 11 e 12. 

O RUMOR DAS MÁQUINAS é o terceiro livro de poesia do Rui Miguel Fragas, com ele ganhou o IV Prémio Literário Saldónio Gomes, 2015, um prémio literário atribuído pela Universidade de Aveiro. Parabéns Rui.

Capa de Sofia Pené Barros, inspirada nos desenhos das Máquinas de Leonardo da Vinci

O Bar do Sítio das Artes vestiu-se com os poemas do Rui, 
a parede do balcão tornou-se a capa do livro, Figueira da Foz.



Rui Féteira - Rui Miguel Fragas

António Tavares, vereador da CMFF, apresentou o livro do Rui. A.T. venceu o prémio Leya 2015, com a obra O Coro dos Defuntos.

Segundo o apresentador o livro divide-se em três partes ou três livros; o primeiro, poderia ser uma aproximação ao Génesis; o segundo, ao Eclesiastes, e o terceiro ao Apocalipse. Vê, ainda, o apresentador, num último poema, um quarto livro com o nascimento de um homem novo... a esperança.
Ainda só li alguns poemas mas posso testemunhar que dos três livros do Rui este é o melhor, ele iniciou uma escalada, agora resta-lhe superar-se a si mesmo.

Na apresentação o grupo de teatro "O Pátio das Galinhas", do qual o Rui faz parte, declamaram e coreografaram alguns dos seus poemas. Foi um momento muito belo. A música utilizada foi a que aqui se coloca: Rodrigo Leão [de quem sou fã].


17 comentários:

  1. Fiquei maravilhado com o que li, Ana !
    Podia ( e devia ! ) relevar muitos mais, mas opto por este trecho :
    "
    Das árvores onde repousa o vento aprenderam que é da terra e água
    que é feito o fogo dos frutos. O mar é anterior às montanhas e antes
    das máquinas as máquinas não eram necessárias: as máquinas".
    E quanto ao vídeo e à música do Rodrigo Leão, de quem sou admirador, muitíssimo bem casado com esta obra do Rui Fragas, que não conhecia.
    Muito obrigado e felicito-te pela super reportagem.

    Um beijo amigo.


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    1. Obrigada, João.
      Só hoje pude vir agradecer a sua presença.
      Beijinho.:))

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  2. Parece ter sido bonita a apresentação do livro. Os poetas dizem as mesmas coisas de forma tão original que deixam uma pessoa desarmada

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    1. Bea,
      Foi bonita sim.:))
      Concordo com a sua afirmação.
      Boa noite.

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  3. Bela reportagem!

    Gostei muito da foto do mar. Deixou-me saudades:)

    Um beijinho:)

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    1. Obrigada, Isabel.
      Só hoje pude vir agradecer a tua presença.
      Beijinhos.:))

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  4. Grato pela partilha

    Aveiro a minha cidade
    das primitivas memórias
    Bj

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    1. :))
      Obrigada.
      Só hoje pude vir agradecer a sua presença.

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  5. Foi um momento único! Gostei de tudo, da poesia, da teatralização, do espaço, das palavras do apresentador e sobretudo da companhia...a Ana, claro!
    Beijinho e obrigada por me acompanhares em momentos, como sabes, tão especiais :)

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    1. Obrigada pela boleia e pela companhia, Graça.:))
      Adorei.:))
      Beijinhos.

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  6. Tanta coisa coisa interessante, Ana! Um beijinho

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    1. Obrigada, MJ.:))
      Um beijinho.

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    2. Só hoje pude vir agradecer a sua presença.
      Ando cansada...:))

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  7. Posso, Ana?

    Eu vejo
    para lá do imagino
    mel a escorrer do alto
    por entre os dedos
    um fio louro de ouro
    a derramar-se na vastidão
    do amorfismo das coisas
    a dar-lhes forma e alma
    e delas irromper a vida
    e o tempo de amar

    Levei melado o dedo
    à boca da certeza
    Até as vírgulas...

    Parabéns ao Poeta e repórter.

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    1. Obrigada, Agostinho.
      Só hoje pude vir agradecer a sua presença.:))

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  8. Esta tua fotografia é muito bonita. Gosto muito de contemplar o mar.
    Beijinhos! :-)

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