17/07/2014

Aprazíveis Diálogos - VII

Na zona de grande Lisboa, o amigo Manuel Poppe (Estoril) do blogue Sobre o Risco, foi uma das pessoas que por aqui passou. O que nos uniu foi a paixão pelo Panteão de Agrippa e a bela cidade de Roma. Atendendo ao meu pedido, o que muito agradeço, o Manuel enviou-me [nas suas palavras] o seguinte "contarelo":

A mão de Deus

 À memória de Luciana Piai, bela veneziana, jovem mulher pura, amiga fiel, morta antes do tempo, com a saudade e a ternura que me ficaram para sempre
Manuel Poppe, Telavive, Foto Dizza
 - A vida custa! – desabafou Alfredo.
 Sempre que saía de casa e ia respirar ar puro ao cafezinho da Malveira, a espreitar a serra de Sintra, encontrava o Alfredo. É um homem bom, vindo de Chaves, que estudou e se reformou professor universitário.  
 Tem o hábito de tirar e pôr os óculos de falsa tartaruga, olhar o infinito, e dizer coisas profundas. Depois, suspira e goza a própria lucidez.  
 Conhecemo-nos há muitos anos: desde a Faculdade.  
Era pobre, mas casou rico. Hoje, além dos óculos, arranjou um modo de viver com os outros: a condescendência. Porquê? Porque há no fundo dele, na barriguinha dele, no umbigo dele, o sonho de poder ser condescendente, generoso, paternal.  
 Dos bancos da Faculdade, ficou-me vê-lo saltar para o palco do anfiteatro maior e gritar uns versos épicos, entusiásticos, lusitanos; do dia-a-dia, lembro, com meiga ironia, o seu improvisado francês e a obsessão de uma senhora, que nunca conheci, a quem chamava “a minha marrraine”, com os três erres.
 - É verdade, Alfredo, a vida custa.
 Foi quando ele tirou os óculos e me fitou, incisivo:
 - Não tenhas dúvidas! Isto é uma pouca-vergonha! Ainda agora…
 E falou-me do que já lhe roubara o governo, a ele, Alfredo, catedrático jubilado, latinista conhecido e admirado.
 -E citado! -sublinhou.
Graças a Deus o sogro, senhor de uma rede hoteleira, ainda era vivo e o negócio prosperava. Se não…
- Vivo e rico! -sublinhava Alfredo.
E a mulher aplaudia, na casa que o sogro lhes oferecera e onde viviam os dois com os dois filhos.
- Se não fosse isso!
Não lhe perguntei o que seria se não fosse isso. 
Na mesa ao lado, estava uma senhora, com o neto.
- Quantos anos tem o seu neto? -perguntei-lhe.
- Oito. E já é um maroto.
Criança como as outras, feliz e a tirar do bolso da avó o que ela desse.
- Ó avó, custa só cinquenta cêntimos! Dá lá…. Anda…
- Não dou, pago depois.
E ele foi e voltou com três tabletes de chocolate.
-Três?! –exclamou a avó.
 O dono do café, embaraçado, justificou o garoto:
 - Ele quis, eu deixei… Crianças. E, depois, três euros…
 A avó fingiu que se zangava.
- Ó meu malandro!
O miúdo riu-se e fugiu: sentou-se fora, a olhar para a Serra.
- A vida custa! – repetiu o Alfredo.
E eu comentei, para que não ficasse sozinho:
- Ai custa, custa!
Agarrou logo:
- Achas que isto vai piorar?
- Com certeza!
- E vão tirar-nos mais dinheiro?!
- Cada dia mais.
O Alfredo levantou-se e sentou-se, tirou e pôs os óculos:
- Estou indignado!
O miúdo continuava nas escadas, a morder as tabletes.
-Graças a Deus, graças a Deus, o meu sogro ajuda-nos! E com mil demónios, também sou gente! Professor Universitário! Jubilado! E roubam-me! Depois de uma vida de trabalho!
Espreitou-me, desconfiado.
- A ti não te roubam?
Alfredo tinha estudado em Lisboa e alugara um quarto para os lados da Amadora. Subira na vida, realmente, a pulso e olho esperto.
-A vida custa! Sai-nos do corpo! -insistiu.
O miúdo voltara para dentro e fiz-lhe uma festa na cabeça.  
Tenho um metro e oitenta e a criaturinha, metro e meio.
Senti, no meu braço, uma carícia: era a criança a retribuir-me o gesto.
Pensei em Deus, no menino Jesus, naqueles que ainda não morreram vivos e não queimam todos os dias a alma. Sim: marejaram-se-me os olhos.
- Isto é indecente! Indecente!
A lengalenga do Alfredo.
E pensei, também, que o Alfredo era, apenas, um velho e aquele breve afago me aquecia. Acreditei que isto é mais do que isto, enquanto aquela criança não crescer, porque o andar dos anos destrói a pureza e multiplica os Alfredos.

Manuel Poppe, Natal de 2013

21 comentários:

  1. O Alfredo parece saído da cena final dos Maias...
    Quase que o poderíamos ouvir dizer:

    “—      Nem para o amor, nem para a glória, nem para o dinheiro, nem para o poder...

    Boa noite :)

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  2. Um conto sublime e terno.
    Os cataratas que sabendo muito nada sabem para além de si, à espera de um afago.

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  3. "Que coisa linda Ana, adorei matar saudade do Manoel Poppe e vir aqui ler voce, completa tudo."

    bjs muitos

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  4. Belíssimo texto!
    Fiquei com pena quando terminou; desejava ler mais...
    Actual e terno!
    Com a beleza que o Manuel já nos habituou!

    Ana, parabéns por mais está magnífica postagem!

    Um beijo especial para ambos.:))

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  5. Um texto cheio de beleza e ternura! Um grande texto como são sempre os do GRANDE escritor que é Manuel Poppe!

    Um diálogo aprazível e maravilhoso!

    Um beijinho :)

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  6. Manuel,
    Muito obrigada pela magnífica história, pelo encontro, o acaso, um momento. Ter aceite o meu convite é a gentileza maior. :))
    Beijinho.

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  7. Xilre,
    Que engraçada a relação que lhe produziu o texto.
    Boa noite!:))

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  8. Agostinho,
    Obrigada pelo comentário gentil e merecido pelo Manuel Poppe.
    Boa noite!:))

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  9. Pedro,
    Obrigada. Envio as estrelas ao Manuel. :))
    Beijinho.

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  10. Queridas Amigas Vurdóns,
    Muito obrigada pela vossa presença e comentário. O Manuel foi querido. Beijinhos muitos. :))

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  11. Cláudia,
    O Manuel é que está de parabéns pelo texto e pela partilha neste diálogo.
    Beijinhos. :))

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  12. Cláudia,
    O Manuel é que está de parabéns pelo texto e pela partilha neste diálogo.
    Beijinhos. :))

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  13. Isabel,
    Obrigada pelo comentário que espero o Manuel leia.:))
    Beijinho.

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  14. Finalmente, Margarida, the last but not the least,
    muito obrigada pelo comentário.
    Por acaso sabe como se coloca responder para cada pessoa?
    Era mais prático e não me esqueceria de ninguém.
    Beijinho. :))

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  15. Finalmente, Margarida, the last but not the least,
    muito obrigada pelo comentário.
    Por acaso sabe como se coloca responder para cada pessoa?
    Era mais prático e não me esqueceria de ninguém.
    Beijinho. :))

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  16. Conheço tanto Alfredo...
    Inspiram-me raiva e metem-me medo

    (Excelente o texto)

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  17. Obrigada, Rogério.
    O mérito é de Manuel Poppe.
    Boa noite!:))

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  18. lindo o que fez, obrigda!!! alas tdos teus posts sao lindos!
    beijos imensosssssssssssssssssss

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  19. Beijos Myra e muito obrigada por passar por aqui.:))

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