23/07/2014

Aprazíveis Diálogos- VIII

De Lisboa, mais propriamente do Estoril, uma flor trouxe-me o texto de Maria João Falcão do blogue O Falcão de Jade. Tive o privilégio de ler diversos contos desta minha amiga. A unir-nos para além de Roma, há uma cidade portuguesa cheia de afectos: Portalegre. A flor e a tela, de Aldo Zari (1982), são fotografia da sua autoria. Muito obrigada. :))

«A Mãe



Ela

Descia as curvas da serra, de carro, a ouvir um Nocturno de Chopin, quase sempre o mesmo.

Lembrava-me de ouvir a minha mãe tocar Chopin, ou Lizt, na velha casa amarela da minha infância.

Em volta a natureza era maravilhosa. Chegara o Verão e via os campos, lá em baixo, com as searas brilhantes e dourados, e uma ou outra papoila bem vermelha a rebentar.

Ia ter com ela, que estava a morrer.

Sabia que sofria e que tudo ia acabar em breve. Irremediavelmente, íamos ficar separadas, como tínhamos vivido tanto tempo.

Separadas.

Enquanto fazia e desfazia as curvas da estrada, no meio dos pinhais e dos eucaliptos, olhando as giestas amarelas cheias de força, pensava que, se calhar, lhe era indiferente ver-me chegar.

Quando entrava no quarto dela, esquecia tudo. Às vezes deitava-me ao lado e cantava-lhe baixinho as canções que me ensinara, em pequenina.                                                   Aldo Zari, Bailado [intitulado por mim]

“Ah! Si j’étais
le rossignol qui chante...
Dans la fôret, 
je viendrais près de toi.
Et chanterais
d'une voix si touchante...” 

Numa dessas manhãs, começou a chorar, de olhos fechados, soluçando como uma criança.
- O que foi, Mamã?

Disse apenas:
- Dói-me... 
- O quê, Mamã?

Eu falava-lhe como se ainda fosse pequena e estivesse deitada na cama dela, a ouvir as histórias que nos contava.
O que lhe doía?

Sabia que não lhe doía o que me doía a mim, o afastamento de sempre.
Guardava a esperança de que sentisse alguma saudade desses tempos, e estivesse agora mais perto de mim, na recordação. 

“Por isso, a vontade de chorar?”, pensei por um momento.
O mais provável era que lhe doesse a sua dor real, física.

Queixara-se sempre pouco a minha mãe, e aguentava a dor como aguentara a solidão na casa da Serra, tantos anos. 
Mas desta vez gemera, protestara.

“Pobre Mamã”…

Dei-lhe a mão, fiz-lhe uma festa, e comecei a chorar, baixinho, para ela não me ouvir.»

Maria João Falcão
Dois Nocturnos da minha eleição.

19 comentários:

  1. Li e ouvi.
    “Fazia e desfazia as curvas” da vida num sobressalto de medo. Que confissão bonita.
    Há de ter ido feliz, a mãe. Ainda hoje, passa na serra a surpreender-se com Chopin, com um ramo de flores, com um bailado num quadro, com as velhas canções e sobretudo com um afago de mão. De olhos fechados.

    ResponderEliminar
  2. Quem eu vim encontrar aqui, ana.
    Yundi Li, um génio!
    Beijinhos

    ResponderEliminar
  3. Um texto lindo e comovente escrito por uma pessoa extraordinária!

    Que pena que os contos da Maria João não estejam publicados...

    Gostei muito do título que deste ao belíssimo quadro de Aldo Zari.

    Um beijinho para ti e outro para a Maria João :)

    ResponderEliminar

  4. Obrigada por trazer este texto. "Apanhou-me" num momento difícil. Daí a lágrima.

    Beijo
    Lídia

    ResponderEliminar
  5. Querida Ana! Só tenho que agradecer... Obrigada por ter "dialogado" comigo. Gostei muito das suas escolhas de pintura (o velho amigo Aldo Zari!) e os Chopin numa interpretação maravilhosa.
    Um beijo

    ResponderEliminar
  6. A saudade começa na primeira percepção da ausência

    (não conheço todo o conto, mas me pergunto se o choro não terá uma pontinha de remorso, que nem os Nocturnos atenuam...)

    ResponderEliminar
  7. Agostinho,
    A Maria João vai gostar do seu belo comentário, como eu.
    Obrigada.
    Boa tarde!:))

    ResponderEliminar
  8. Pedro,
    Um dia destes vai ter uma surpresa por aqui.
    Gosto muito deste pianista.
    Beijinho. :))

    ResponderEliminar
  9. Isabel,
    Concordo contigo. Os contos da Maria João merecem ser publicados.
    Ela é uma pessoa muito especial.
    Beijinho. :))

    ResponderEliminar
  10. Margarida,
    O mérito é da Maria João. :))
    Gosto muito do que escreve.
    Beijinho. :))

    ResponderEliminar
  11. Lídia,
    Um abraço apertado.
    Gosto muito deste texto e do afecto que dele emana.
    Obrigada pela sua passagem.
    Beijinho. :))

    ResponderEliminar
  12. Maria João,
    A interpretação é para si. Obrigada por ter aceito o convite e por dialogar comigo e com todos os que nos visitam.
    A imagem é sua, gostei muito daquela flor e da pintura de Zari. É um bailado perfeito.
    Parabéns.
    Beijinho gratíssimo.
    :))

    ResponderEliminar
  13. Rogério,
    Julgo que não há remorso, embora, nós homens, quando nos bate a saudade, achemos que nunca foi bastante o que fizemos pelos nossos ancestrais.

    Obrigada pela sua passagem.
    Boa tarde. :))

    ResponderEliminar
  14. Maria João e Ana, até me arrepiei com a pureza e beleza destas palavras...

    O ser humano e o seu comportamento são tão complexos!
    Nem sempre o que se demonstra corresponde ao que na realidade se sente!
    Mas tanto como nós como os outros sofremos e vivemos com essa consciência e com essa angústia...

    Contudo, não conseguimos mudar!

    Um beijinho especial para as duas senhoras!

    ResponderEliminar
  15. Obrigada, pela minha parte, CLáudia. E a ti, Ana...um beijo grande.
    Gostei muito do que todos disseram. Senti-me importante...
    Sim, "fazia e desfazia as curvas, num sobressalto de medo". A vida afectiva é muito complicada. Talvez houvesse remorsos naquele choro. Talvez. A minha mãe morreu poucos dias depois.
    "Há mais coisas no céu e na terra, dizia o Shakespeare pela voz de Hamlet, do que sonha a tua vã filosofia". As vidas estão cheias de mistérios, alguns nunca saberemos ao certo. A minha mãe era a minha mãe...

    ResponderEliminar
  16. Cláudia,
    Obrigada. Este texto da Maria João é muito intenso e bonito. Os comportamentos humanos são complexos mas o amor e a dor são sempre os mesmos. :))
    Beijinho grato pelas suas palavras, sendo o mérito da Maria João. :))

    ResponderEliminar
  17. Maria João,

    Obrigada pela partilha e pela sua beleza.
    Beijinho.:))

    ResponderEliminar

Arquivo