27/07/2014

"ismos" e as proporções

Ando a ler "O Homem de Constantinopla" de José Rodrigues dos Santos que se baseia na história do Calouste Gulbenkian.
A Gulbenkian é um dos espaços museológicos que mais visito por causa das exposições realizadas. É um local muito agradável onde a arquitectura e a natureza comungam em perfeita harmonia. O livro só pela história  que encerra é algo que cativa. 
Quanto a Kaloust Sarkisian Gulbenkian é uma personagem controversa, pois suscita a admiração mas, também, em algumas circunstâncias, o desapreço. Porém, o saldo é positivo, era um homem que tirou partido do seu destino e soube conduzir os seus negócios. 
O escritor inicia a história com quatro versos de Fernando Pessoa que são sublimes para a biografia construída:
Cada um cumpre o destino que lhe cumpre,
E deseja o destino que deseja;
Nem sempre cumpre o que deseja,
Nem sempre deseja o que cumpre.

Trago esta personagem aqui pelo gosto que ele tinha, pela arte e pelo coleccionismo, além disso povoa o meu pensamento. Quem tem poder económico pode amar a arte tornando-a sua.
Apesar de ser amante da arte, da beleza e dos artefactos que nos rodeiam contento-me com o ajuntamento possível. 
Hoje a passear na feira de velharias encontrei uma chávena de café para a minha colecção. Observando-a, parecia-me que o seu design era Arte Nova mas ao procurar os seus dados vi que foi uma chávena fabricada na antiga Kaiser Porzelan mais propriamente na Alka Bavária e pelo carimbo da mesma [ver figura abaixo, retirada do site da fábrica], vi que foi fabricada entre os anos de 1938 e de 1946, logo é uma chávena que foi criada ou no ano em que antecedeu a II Guerra Mundial ou durante a mesma. O movimento nas artes decorativas denominado Arte Nova já tinha terminado, possivelmente insere-se na Arte Déco que terá os dias contados.

A chávena foi-me oferecida e custou a quantia de 2 euros. 
Não é um tesouro mas é claro que, para mim, torna-se num. 
Além do dourado a chávena é branca e tem um azul celeste.

Retirado do site acima assinalado


A deambular pela feira, a minha alma ficou presa a variadíssimas coisas, com preços nada semelhantes, mas há que fazer obras em casa e por isso ter cuidado com os gastos.

A peça que me custou mais dinheiro (10 euros), não está perfeita, não sei se é verdadeira,  conjecturei que poderia ser de um serviço de brincar pois mede 16,3x12,2 cm, mas eventualmente, poderá ter uma utilidade mais prosaica. Foi confeccionada em Coimbra como mostra o reverso da travessinha.

Comprei  mais três peças, duas delas do mais kitsch possível, pediram-me 50 cêntimos por cada. O meu gosto nestas peças prende-se com o espírito popular. Não sei o que vou fazer com elas, talvez sejam dignas da minha cozinha. A primeira é de barro, não vale nada, e mede 7x7,5 cm e a segunda, 10,5x 6 cm.

 A última peça é a Nossa Senhora da Conceição em pó de pedra (?).
Não está completa e é pouco perfeita, tem um furo na base e mede 7 cm.

Chegados aqui o que resta? 
As proporções. O espólio do engenheiro Gulbenkian é inatingível para o comum dos mortais. O que faria a alegria do engenheiro afortunado, talvez fizesse a minha, mas a minha de certeza que não faria a dele. Porquê? 
Porque me contento com tontarias, feminilidades sem nexo, tesouros de imaginação.
Em suma, há algo que nos une: a beleza que é algo que partilhamos e o bom gosto, julgo que também. Vejamos:

Vivia de tal modo no desejo de se ligar ao que achava belo que, nessa manhã em que de novo se embriagava com o esplendor de Constantinopla a despertar, formulou pela primeira vez a pergunta que começava a corroê-lo.
"O que é a beleza?"
Todas as manhãs desde que as aulas se iniciaram, o jovem Kaloust atravessava o estreito no vapor para ir para a escola. A viagem constituía o primeiro ponto alto do dia, sobretudo àquela hora em que a luz da alvorada adquiria tonalidades tão fascinantes que deixavam uma impressão indelével no seu gosto nascente pela harmonia estética. [p. 63]
(...) 
"O que é a beleza?" perguntou mister Washburn num tom que tornava claro ser aquela a última das interrogações introdutórias. "Pulchra sunt quae visa placent, enunciou S. Tomás de Aquino: a beleza é o que agrada aos nossos sentidos. Nada podia ser mais verdadeiro. Mas onde a encontramos exactamente? Nos objectos em si ou na pessoa que os contempla?" [p. 75].

José Rodrigues dos Santos, O Homem de Constantinopla. Lisboa: Gradiva, 2013.
[O livro narra acontecimentos verídicos encenados com a ficção].

O destino de Calouste Gulbenkian cumpriu-se, o seu desejo de destino também. Do meu destino nada sei mas ainda não se cumpriu, nem o efectivo caminho nem o desejado. 
O meu gosto por velharias prende-se às memórias que cada objecto comporta.


19 comentários:

  1. Talvez deixemos um bocadinho, um fragmento, da alma agarrada a cada objecto nosso, e assim a passemos, de mão em mão, de geração em geração. Talvez os objectos que pertenceram a outrem, tragam essa parte da alma deles, num plano invisível aos olhos... apenas ao espírito.

    Boa noite :)

    ResponderEliminar
  2. Não sabia que coleccionavas chávenas de café...

    ResponderEliminar
  3. Gosto muito do Museu Gulbenkian e estou muito grata ao seu mentor por ter deixado ao nosso país tanta beleza para nosso usufruto.
    Adoro feiras de velharias. Há muitas pela tua zona? Qual aconselhas?
    Beijinho!

    ResponderEliminar
  4. Xilre,
    Sim, acho que é isso, um fragmento nosso fica em cada objecto. Às vezes gostava de ser mais desprendida. Para quê ter tanta tralhita? :))
    Bom dia. :))

    João,
    Colecciono, sim, principalmente de chá, mas também tenho de café pela sua diferença e arte. :))
    Os bules já deixei de coleccionar, ocupam muito espaço. :))
    Beijinho.

    Sandra,
    Por aqui à volta há muitas, Figueira da Foz, Miranda do Corvo, Lousã, ... estes são os sítios que já visitei. Em algumas férias encontras algumas peças interessantes mas na maioria não, são mesmo velharias desgarradas, daí os preços. Todavia, depende do que procuras e do que queres.
    Tenho um gost muito variado ficam os meus olhos nos livros, nas peças sacras, nos linhos... azulejos, etc. Complexo como vês. Devia especializar-me numa só peça, porém não consigo.
    Detesto esta minha faceta.
    Beijinho. :))

    ResponderEliminar
  5. "O que é a beleza", ora aí está uma bela questão. Tão subjectiva, tão pessoal, tão nossa.

    Gostei muito das peças que comprou, particularmente da travessinha, uma verdadeira delícia.

    Aquando da minha mudança, há cerca de um ano, não imagina a "tralhita" que tive que deixar para trás. Algumas peças bonitas, outras cujo valor era apenas estimativo, só que sair de uma casa grande para outra mais pequena obrigou-me a "abandoná-las", a entrega-las a mãos a quem nada diziam.
    O que mais me custou foi deixar parte dos meus livros. De vez em quando lá dou por falta de um dos obrigatórios e corro a repô-los, como aconteceu há dias com "O Processo", de Kafka.
    Quanto a Gulbenkian, Ana, não posso deixar de sentir por ele uma imensa gratidão. Mau grado aspectos menos bons, a verdade é que não fora ele e muitos dos tesouros que nos tem sido dado ver ser-nos-iam vedados.

    O desaparecimento da sua coluna do lado esquerdo? A minha também desapareceu há uns meses, só se visualiza quando entramos nos comentários. Se bem que isto tenha pouca importância, o que é verdade é que me fez desinteressar pelo blog.
    Estou a tentar a reconciliação :)

    Beijinho.

    ResponderEliminar
  6. Aparentemente foi o sidebar que foi até ao Mondego...
    Não tens aí um técnico de confiança ?

    Votos de resolução, Ana !

    Um beijo.

    ResponderEliminar
  7. Gostei muito da tua Nª SEnhora da Conceição! é Linda! Tão delicada...
    Não conheço nenhum livro do escritor, e acho que já não vou conhecer. O tempo passa tão depressa que prefiro outros livros de que sei que vou gostar onde vou encontrar e "viver" o dia a dia de alguém de quem me posso sentir próxima. (Tanta filosofia barata, desculpa, Ana!) Sabes que gosto sempre dos teus posts e vi compraste coisas lindas! beijos

    ResponderEliminar
  8. Não valem nada e, contudo, na mão certa valem tudo, Ana.
    Mais do que os olhos, as mãos precisam do conforto das formas, senão somos poeira a vaguear sem destino nem tempo, num cosmos que não nos pertence.
    “Tontarias, feminilidades sem nexo, tesouros de imaginação.
    Em suma, há algo que nos une: a beleza que é algo que partilhamos e o bom gosto”.

    ResponderEliminar
  9. A Gulbenkian foi o nosso ministério da cultura no tempo da outra senhora. Os governos da democracia pretenderam criar um mas parece-me que nunca conseguiram. Diz-se, agora, que é secretaria de estado mas nem direção-geral chega a ser.

    ResponderEliminar
  10. Ana, o prazer de ler sua postagem multiplicou-se por três: primeiro o texto, que mescla o didatismo à sensibilidade, a revelação de seus sentimentos; segundo Madredeus, de quem sou fã incondicional e finalmente a oportunidade de lembrar-me de minha visita ao Museu Gulbenkian, pois queria ver a tela de Manet, As Bolas de sabão. Lembranças boas, que alegram este fim de noite. Beijos, boa semana.

    ResponderEliminar
  11. Gulbenkian era um homem de refinados hábitos e gostos, Catarina.
    Que soube partilhar com os outros.
    Só por isso merece a nossa admiração e o nosso apreço.
    Beijinhos e votos de boa semana

    ResponderEliminar
  12. Gostei muito da chávena Art Déco. Lindíssima! Bom dia!

    ResponderEliminar
  13. Ana

    Ainda não conhecia essa sua faceta de caçadora de velharias e achei graça apresenta-la misturando-a com a história do Senhor Gulbenkian, a cuja Fundação a cultura portuguesa tanto deve.

    A chávena tem também interesse pela época em que é produzida. No ano de 1938 os alemães anexam a Áustria e a região dos Sudetas à Checoslováquia. É como se ela fosse um fragmento dessa dramática história da europa Central.

    Bjos

    ResponderEliminar
  14. GL,
    Obrigada. A travessinha é deliciosa pelo tamanho e pelo desenho. Ainda não encontrei dados sobre ela.
    Beijinho. :))

    João,
    Pois apareceu. Não sei se fui eu a responsável pelo desaparecimento, não percebi o que aconteceu mas apareceu.
    Beijinho grato pelo conselho. :))

    Maria João,
    Gostei muito do livro e da primeira parte de "Um Milionário em Lisboa" ainda me cativou mais.
    Estou a meio do livro.
    Não sei se a Nossa Senhora da Conceição tem algum valor mas gostei dela.:))
    Beijinho.

    Agostinho,
    Obrigada pelas palavras gentis. Quanto ao Gulbenkian, a ele devemos o tesouro que nos deixou.
    Hoje faz-se muito pouco pelos nossos tesouros, então este governo, nem se fala. :))
    Boa noite.

    Jane,
    Que bom que de algum modo lhe trouxe boas memórias.
    Também gosto dos Madredeus.
    Beijinho. :))

    Pedro,
    Nem mais. Ele tinha bom gosto e olho certeiro para os negócios além de outras qualidades, algumas duvidosas.
    Mas foi um benfeitor para todos nós.
    Beijinho. :))

    Margarida,
    Gosto muito de Arte Deco. Ainda me irrita pensar não ter logo reparado que só podia ser deste estilo.
    Beijinho. :))

    Luís,
    Gosto muito de andar nestas feiras. Há uns anos atrás era mais frequentadora.
    Obrigada por ter achado graça pelo meu entrosamento. Quanto à história da chávena, é realmente o que me fez ter mais gosto por ela.
    Beijinho. :))

    ResponderEliminar
  15. Olá Ana
    já estou de volta e nestes poucos dias já há tanta coisa para ver!
    Gostei das coisas que compraste. Adoro feiras de velharias e compro o que gosto, se po€€o, sem me importar se tem valor monetário ou não. O que conta é a beleza (como eu a entendo, claro, porque cada um tem o seu gosto).

    Na minha casa há de tudo e tudo acaba por ter o seu lugar, e tal como tu gosto de muitas coisas. Ultimamente compro pouco porque já não tenho espaço e aborreço-mo a limpar o pó. Além disso os livros vão tomando conta de tudo...

    Gostei muito do teu post!

    Um beijinho :)

    ResponderEliminar
  16. Bem... a chávena faz os meus (pobres e modestos) encantos!! Adooooooooooro chávenas! Também gosto de visitar as feiras de velharias.

    Ah! E também gosto de ir à Gulbenkian.

    Beijinho

    ResponderEliminar
  17. Isabel,
    Obrigada. Que bom que estás de volta.
    Acabei por ir hoje à Biblioteca e não passei pela livraria que indicaste.
    Beijinho. :))

    Graça Sampaio,
    Muito obrigada pela sua visita, pela sua partilha. Seja bem-vinda!:))
    Beijinho.

    ResponderEliminar

Arquivo