19/09/2011

Contemporaneidade com o amanhã dos que não tiveram ontem nem hoje.

As minhas amigas da Cozinha dos Vurdóns têm um "post" sobre o amor, a vida, a morte, ... Este é um elo de ligação mas com uma componente mais restrita.


Diego Rivera, Família Pobre na Rua, 1934

Audrey Hepburn em África fotografia retirada do site da UNICEF.


O Haver

Resta, acima de tudo, essa capacidade de ternura
Essa intimidade perfeita com o silêncio
Resta essa voz íntima pedindo perdão por tudo
- Perdoai-os! porque eles não têm culpa de ter nascido...

Resta esse antigo respeito pela noite, esse falar baixo
Essa mão que tateia antes de ter, esse medo
De ferir tocando, essa forte mão de homem
Cheia de mansidão para com tudo quanto existe.

Resta essa imobilidade, essa economia de gestos
Essa inércia cada vez maior diante do Infinito
Essa gagueira infantil de quem quer exprimir o inexprimível
Essa irredutível recusa à poesia não vivida.

Resta essa comunhão com os sons, esse sentimento
Da matéria em repouso, essa angústia da simultaneidade
Do tempo, essa lenta decomposição poética
Em busca de uma só vida, uma só morte, um só Vinicius.

Resta esse coração queimando como um círio
Numa catedral em ruínas, essa tristeza
Diante do cotidiano; ou essa súbita alegria
Ao ouvir passos na noite que se perdem sem história.

Resta essa vontade de chorar diante da beleza
Essa cólera em face da injustiça e o mal-entendido
Essa imensa piedade de si mesmo, essa imensa
Piedade de si mesmo e de sua força inútil.

Resta esse sentimento de infância subitamente desentranhado
De pequenos absurdos, essa capacidade
De rir à toa, esse ridículo desejo de ser útil
E essa coragem para comprometer-se sem necessidade.

Resta essa distração, essa disponibilidade, essa vagueza
De quem sabe que tudo já foi como será no vir-a-ser
E ao mesmo tempo essa vontade de servir, essa
Contemporaneidade com o amanhã dos que não tiveram ontem nem hoje.

Resta essa faculdade incoercível de sonhar
De transfigurar a realidade, dentro dessa incapacidade
De aceitá-la tal como é, e essa visão
Ampla dos acontecimentos, e essa impressionante

E desnecessária presciência, e essa memória anterior
De mundos inexistentes, e esse heroísmo
Estático, e essa pequenina luz indecifrável
A que às vezes os poetas dão o nome de esperança.

Resta esse desejo de sentir-se igual a todos
De refletir-se em olhares sem curiosidade e sem memória
Resta essa pobreza intrínseca, essa vaidade
De não querer ser príncipe senão do seu reino.

Resta esse diálogo cotidiano com a morte, essa curiosidade
Pelo momento a vir, quando, apressada
Ela virá me entreabrir a porta como uma velha amante
Mas recuará em véus ao ver-me junto à bem-amada...

Resta esse constante esforço para caminhar dentro do labirinto
Esse eterno levantar-se depois de cada queda
Essa busca de equilíbrio no fio da navalha
Essa terrível coragem diante do grande medo, e esse medo
Infantil de ter pequenas coragens.

15/04/1962

Vinicius de Moraes, in "Jardim Noturno - Poemas Inéditos", Companhia das Letras - São Paulo, 1993, pág. 17.

11 comentários:

  1. Um post muito bonito Ana.

    Um beijinho e boa semana

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  2. Muito mais se pode fazer e não se faz.
    Bonita composição.
    Abraço

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  3. O DEver

    Resta, acima de tudo, essa capacidade de loucura
    teu rosto em dívida imersa
    tua chaga que chaga e não cura
    esta irrealidade inversa
    esta intimidade com o silêncio perfeita
    delineada pelos falsos sentidos
    Resta essa voz íntima desfeita
    pedindo perdão por pecados esquecidos
    - Perdoai-os! porque eles não têm culpa de ter nascido...mortos
    há-de absolvê-los a lenda do seu crime
    serem mortos quedos e abortos
    o que os redime
    na dívida do sub-prime ao fundo
    que delapidou meio-mundo imundo



    Resta esse antigo respeito pela noite, esse falar triste
    que ninguém me responda estou cansado
    só a sua voz é que existe
    que ninguém te responda estás tramado veado
    Essa mão que tateia antes de ter, esse medo
    ledo e quedo
    de ser diferente
    de nadar contra a corrente
    De ferir tocando, a fraca mão
    tens os olhos abertos vem fechá-los
    o homem não tem mansidão
    o homem abate-se com os chavalos
    morte cheia de mansidão para com tudo quanto existe.
    morte que é tudo quanto persiste


    Erguei no vento as espadas
    nessa imobilidade, essa economia de gestos
    e em estertores funestos
    cortai as gentes que degradas

    Essa inércia cada vez maior diante do finito Infinito
    essa mecânica da palavra vazia
    ergue-se em repelões em cada grito
    Essa gaguez infantil de quem pia exprimir o inexprimível
    é quiçá pouco crível
    irredutível tentativa de poesia não vivida
    tremida
    esquecida
    nessa escolta de palavras sem fim
    que adormece dentro de mim
    enfim
    the end in.....

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  4. Ana,

    Vinícius tinha essa capacidade enorme de se fazer entender e de tornar as coisas belas e simples. Foi um que fez dentro do seu tamanho e por isso acredito que nos identificamos com ele.

    O rosto e as mãos da famosa mulher a carregar a criança são expressões vivas de quem realmente abraça com indignação essa horrorosa e descabida fome.

    Vamos tentando, lutando quase que contra a maré, mas a favor das nossas almas. Não existe tarde demais, existe apenas a hora em que cada um irá despertar e começar a caminhada, rumo a luz que não perece. Feliz caminhada amiga, pois tenho certeza que você já está na estrada.

    bjs meus, com carinho e admiração,
    4 bjs das outras cozinheiras.

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  5. Como é que aqule mulher foi linda até ao fim, ana??
    E sem bisturis à mistura.
    Bjs

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  6. Isabel,
    Obrigada, um beijinho e também uma boa semana para ti!:)

    Catarina,
    É difícil mas o pouco já é bom.
    Abraço.:)

    Lerma,
    Vejo que possui o dom da escrita.
    A sua corrente será dadaísta?

    Cozinha dos Vurdóns,
    Isto saiu a partir do vosso grito.
    Grata pelas interpelações sempre profundas e bem cozinhadas.
    5 beijinhos! :)))))

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  7. Pedro,
    É verdade, linda até ao fim e com muita elegância e amor ao próximo.
    Bjs. :)

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  8. cara ana, é perfeita a conjugação de elementos neste post, que se coaduna, igualmente na perfeição, com a nobreza dos valores a que apela.

    Muitos parabéns e um forte abraço.

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  9. R,
    Muito obrigada pelas palavras gentis.
    Um grande abraço! :)

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  10. Muito belo! Pouco a dizer mais, está tudo dito. E Audrey está dentro do problema, entende...
    beijinhos

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  11. MJ,
    Obrigada pela sua beleza que se vê na partilha.
    Beijinhos. :)

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