11/03/2017

Diálogo


Para além da curva da estrada                                                                    No caminho

Para além da curva da estrada                                                       Encontramos sempre uma barreira
Talvez haja um poço, e talvez um castelo,                                    vislumbro uma torre contra a utopia,
E talvez apenas a continuação da estrada.                                   Na continuação do caminho.
Não sei nem pergunto.                                                                   Nele me embrenho.
Enquanto vou na estrada antes da curva                                      enquanto caminho, só olho em frente
Só olho para a estrada antes da curva,                                         para as árvores e o céu,
Porque não posso ver senão a estrada antes da curva.                 Porque não adivinho o que há para lá
De nada me serviria estar olhando para outro lado                      do caminho e que não vejo.
E para aquilo que não vejo.                                                            Procuro não sentir mas sinto,
Importemo-nos apenas com o lugar onde estamos.                            O passado/presente e não o futuro
Há beleza bastante em estar aqui e não noutra parte qualquer.                  Clepsidra tangível;
Se há alguém para além da curva da estrada,                                             não encontro quem caminhe
Esses que se preocupem com o que há para além da curva da estrada.      Para lá da montanha,
Essa é que é a estrada para eles.                                                                  o caminho para o cume
Se nós tivermos que chegar lá, quando lá chegarmos saberemos.               Chegarei lá?
Por ora só sabemos que lá não estamos.                                          Só sei e sinto o peso de estar aqui,
Aqui há só a estrada antes da curva, e antes da curva                  nesta encruzilhada do caminho onde
Há a estrada sem curva nenhuma.                                      as pedras magoam e o caminho desaparece.

Alberto Caeiro, s.d.                                                                                           11-03-17 ana


Alberto Caeiro, “Poemas Inconjuntos”. Poemas Completos de Alberto Caeiro. (Recolha, transcrição e notas de Teresa Sobral Cunha.) Lisboa: Presença, 1994, p. 129.


17 comentários:

  1. Parece-me uma balada nostálgica, tem ritmo encantatório.

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    1. Bea,
      É a ária da ópera de Bizet Les Pêcheurs de perles, "Je crois entendre encore".
      Achei interessante a interpretação de Guilmour.

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    2. Sim, eu achei-lhe um certo ritmo de onda:)
      Bom Fim de Semana também para si:)

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  2. Gostei sobremaneira do seu poema de ''oposição''...
    Com a ária de Bizet, compõe-se ainda um clima de profunda nostalgia...
    Precisa encontrar outro caminho...
    Beijinhos, Ana.
    ~~~~~~~~~~

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    1. Majo,
      Muito obrigada.:))
      Preciso, todos os dias nos cruzamos com caminhos novos. :))
      Beijinhos.

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  3. Mas nesse outro caminho haverá um poço de água límpida ou turva ?
    E se for o castelo não haverá um fosso ?
    Como diz Alberto Caeiro,
    " Há beleza bastante em estar aqui e não noutra parte qualquer. "
    Mas se "as pedras magoam e o caminho desaparece" talvez uma luz ajude a não aleijar esses pés a encontrarem um caminho sem curvas.
    Esta ária transmite-me uma sensação de desespero e não de esperança.

    Um beijo muito amigo.

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  4. Respostas
    1. Pedro,
      Obrigada pelo gesto tão gentil.:))
      Beijinhos. :))

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  5. Uma maravilha!
    Já não me lembrava deste poema de Caeiro.
    Ai, as curvas...
    Prossigamos...logo se verá...
    beijinho

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    1. Graça,
      Gosto muito de Caeiro. Pois é...:))
      Beijinhos. :))

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  6. Excelente trabalho, Ana, este, que resultou de um jogo arriscado com a poesia e a música, pelo menos, mas também uma flor, a flor.
    Diálogo. Diálogo, assim:
    "Procuro não sentir mas sinto"
    a nostalgia do regresso
    à pátria da esperança. Sinto.
    Sinto a "clepsidra intangível"
    que me afogar na areia. Porém,
    duma estrada feita poderá nascer
    uma por fazer.
    "Je croi entendre encore".

    Bj, amigo.

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  7. Excelente diálogo, Ana. Uma análise mais atenta nos faz perceber na construção dos poemas, a alma de seu autor/autora. O primeiro em sua objetividade quase insensível, apresentando a realidade do agora, do aqui. Sem sonho, sem buscas, sem dúvidas. E o segundo construindo a busca, a dúvida, a ânsia de uma alma inquieta por respostas que não obtém ao viver a realidade dolorosa. Dois poemas, duas almas, uma só arte. Excelente!

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