No início, ao ler as duas primeiras páginas, não estava a gostar da crua verdade da vida, aceitar a ordem natural das coisas: nascer, crescer, envelhecer. Parecia-me que o livro era amargurado. Depois ao passar dois dias do início do Diário, apaziguei-me com a leitura. Talvez porque a vida acaba sempre por gritar.
«Estoril, terça-feira, 26 de Novembro de 2013
Um salto ao Príncipe Real para a vernissage do Carlos Pedro Barahona Possollo (...) As exposições são sempre emocionantes, com as telas muito grandes, de um realismo quase fotográfico, e as figuras, mormente inspiradas na mitologia grega ou romana, nos pecados capitais ou na herança egípcia, projectam-se em toda a sua nudez. Nem todos têm estômago para aquilo. [É verdade, algumas telas são difíceis, vi esta exposição]. Os genitais são portanto escalados a proporções ciclópicas, enquanto os rostos são perversamente comuns, como os das pessoas com quem nos cruzamos diariamente, o carteiro, a cabeleireira, o gerente da conta.
As telas são indecorosas, ofensivas para muitos, mas o talento é tamanho que amortece o escândalo. Para mim o que espanta é o contraste dos seus nus com a expressão angélica que Deus lhe deu. (...)
Ana Maria Caetano, filha do Professor Marcello Caetano, mulher culta e livre, tem um trabalho dele a toda a largura da sua sala de Belas, representando a arquetípica Inês, que provoca chiliques às visitas. Embora trajada com vestes de rainha, está nua da cintura para baixo, sentada, as pernas abertas, as mãos pousadas nos joelhos afastados, como se preparasse para introduzir um tampão.
É risonho e doce [(Kapê) Carlos Pedro Possollo], fala muitos decibéis abaixo da maioria das pessoas, e é daquela delicadeza sincera e humilde própria dos muito inteligentes, ou daqueles que já foram e voltaram em termos de Conhecimento e, no caminho, se aperceberam do que realmente conta num ser humano. Lembro o que alguém (1) escreveu e lhe assenta como uma luva:
Carácter é o modo como tratas as pessoas
que nada têm para te oferecer»
Rita Ferro, Só se Morre uma Vez, Diário 2. Lisboa: D. Quixote, 2015, pp. 17-18.
(1) Abigail von Buren [americana Pauline Phillips...]; sublinhado meu, pois gostei sobremaneira da citação.
Rita Ferro não se refere a esta Inês aqui apresentada. Contudo, resolvi colocá-la porque não encontro a que o trecho descreve. Para mim a nudez inteira não me choca. Se calhar a tela da colecção particular é mais impressionante. Tentei encontrá-la mas a minha procura foi infrutífera.
Carlos Barahona Possollo, Inês ou o Reino, 2004
120 x 85 cm.
http://barahonapossollo.com/
Imagem daqui
Só se morre uma vez, depois das muitas que que ocorrem todos os dias. Definitivamente!!
ResponderEliminarMuito interessante este poste com pistas para explprar.
Bfs.
Obrigada, Agostinho.
EliminarUma boa semana. :))
Já tenho o livro.
ResponderEliminarA nudez exposta de forma natural também não me choca (esta tela por exemplo não acho nada chocante, mas a outra que é referida no texto parece-me que o é. Gostos não se discutem, mas de certeza que não gostava de ter uma tela assim na minha sala (nem em nenhuma divisão da casa).
O Charles Aznavour é sempre uma boa escolha:)
Bom domingo, Ana:)
Isabel,
EliminarComecei a ler e estou a gostar, se bem que o início me desagradou.
É o retrato social e as vivências de determinado grupo de pessoas.
Quanto à nudez, acho-a bela mas quando é um pouco de luxúria não me encanta.
Beijinho e boa semana. :))
Aninhasamiga
ResponderEliminarComo sempre sou frontal: não gosto da Rita Ferro. Mas pelo andar da carruagem vou mesmo comprar o livro com um título sugestivo. Depois te direi o que vou pensar sobre ele. Já do Charles Aznavour, adoro-o!
A tela é belíssima; só os (falsos) puritanos diriam mal dela...
Qjs
Amigo Henrique,
ResponderEliminarPois, gosto de frontalidade.
Até Veneza pode Esperar, Diário 1 nunca tinha lido nada de Rita Ferro. Veneza foi o ponto de contacto. Também me questionei sobre as minhas vivências e escolhas tão diferentes desta escritora. Contudo, descobri uma mulher com garra, fruto do seu tempo e da sua família, que tem graça na forma como escreve, lúcida, crua e sensível ao mesmo tempo.
A tela é linda. Barahona nem sempre é fácil de ler, siga o link.
Quanto aos familiares do passado (tão interventivos num Portugal que não queremos que volte) ela não tem culpa da sua ascendência, ou do que os seus fizeram... Eram intelectuais com o seu valor. As ideias políticas são diferentes mas a cultura é sempre um ponto de contacto.
Beijinhos. :))
~~
ResponderEliminar~ É no Verão,
que também leio Rita Ferro, com a sua escrita concisa, ousada e desconcertante, que reserva mistérios que acabam por dar todo o sentido à obra. Bom entretenimento assegurado.
~ Não sabia do livro, pelo que, agradeço.
~~ Excelente postagem. ~~~
~~~~~~ Beijinho. ~~~~~~~
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Majo,
EliminarSaiu há pouco tempo.
É um livro para saborear no Verão, sem dúvida.
Beijinho. :))
Obrigada por ter gostado, Majo. :))
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