Localizada ainda no Centro do país, mais propriamente entre os rios Lis e Lena, houve um pássaro que me trouxe uma história da parte do Agostinho do blogue o Mundo é Grande.
O retrato do que se vai ler bem podia passar-se no presente com a fome que, infelizmente, grassa no nosso país.
Muito obrigada.
Uma voltinha de avião
A ceia lá em casa era servida pela matriarca já a noite ia
adiantada.
Essa hora tardia não tinha a ver com desleixo ou preguiça
na preparação da refeição mas com a necessidade de acorrer a mil e um afazeres,
que a ocupavam nas duas ou três horas depois do trabalho diário normal na
fábrica, arrastando as lides culinárias para horas mais tardias.
Os salários do pai e da mãe juntos não eram nada que se
visse e, para sustentar a vasta prole, era necessário usar engenho e arte para
administrar e fazer durar o pouco dinheiro que entrava em casa. Por isso, era
necessário complementar os proventos com mais trabalho esforçado no lameiro,
para que houvesse batatas e couves na panela, apanhar ervas para os coelhos,
engordar o porco, e um sem número de coisas pequenas mas indispensáveis à
sobrevivência do clã. Depois da ceia, acomodados os meninos, ainda havia um ror
de aconchegos domésticos a fazer mas, paciência, houvesse saúde e tudo se
resolvia.
Enquanto a mãe ia preparando a refeição, os pequenos davam
largas às traquinices próprias da idade, percorriam a casa num tropel
constante. Na galhofa, por entre gritos e risos era uma festa. Também havia
algumas zangas e choros pelo meio, ultrapassados rapidamente porque, na
verdade, não havia tempo a perder. De nada adiantavam choraminguices ou queixas
porque delas, muitas das vezes, não resultava nada mais senão um puxão de
orelhas ou um tabefe subsequente ao julgamento sumário, inevitavelmente, quando
havia recurso à instância mais elevada da hierarquia, a mãe ou o pai, nos
conflitos mais bicudos de dirimir.
É claro que a ementa não era muito elaborada ou complicada,
por via da falta de tempo e, sobretudo, pela escassez que havia na intendência,
de modo que, umas papas de farinha de milho, cozidas com feijão vermelho,
apareciam, em três tempos, a fumegar nos pratos na larga mesa da cozinha. À
ordem “meninos para a mesa já”, as brincadeiras cessavam como se de uma ordem
militar se tratasse, dada pelo comandante do batalhão no campo de
batalha; os soldados, de pronto, respondiam precipitando-se para a mesa num
ápice, cada um no seu devido lugar.
Apesar do exemplo
do pai, que começava a comer de imediato, pois o apetite era mais que muito
depois de tantas horas de trabalho, primeiro na fábrica e depois na courela que
enchia o panelão familiar, havia sempre alguém, de entre os mais novos, que
refilava e fungava recusando a paparoca, ou usando a manha de se fingir
adormecido para conquistar a tolerância paterna. Não ganhava pela demora. Por
mais refinada que fosse a estratégia, por mais elevada que fosse a
representação empregue na rebelião, a decisão do pai não se fazia esperar.
- Comes ou vais dar uma volta de avião?
Perante a recusa
de levar as papas à boca, o senhor Santos levantava-se do seu lugar, pegava no
rebelde pelos braços, saía para o alpendre da casa, baixava-o até ao chão do
pátio e, por mais que esperneasse, mergulhava o filhote no escuro da noite.
Perante isto, o petiz, cheio de miufa, tratava de subir
logo pelo escadório, fugindo à escuridão da rua, sentava-se à mesa e começava
de imediato a comer, sem mais delongas. A voltinha de avião abrira-lhe, como
que por magia, o apetite.
Fim
2011
Agostinho
Dos Miseráveis a excelsa música dos oprimidos.
Agostinho,
ResponderEliminarMuito obrigada pela partilha desta história.
Boa tarde
Adorei ler a história!
ResponderEliminarAchei um encanto a forma como foi contada :)
Gostei da foto e fiquei curiosa acerca duma coisa: o que é o azul?
Um beijinho e bom fim-de-semana!
Isabel,
ResponderEliminarO azul foi graças à luz da manhã. A mesa é de plástico, negro era a sua cor.
Não é nenhum efeito.
Obrigada.
Beijinho. :))
Belo post! Parabéns Ana e Agostinho :)
ResponderEliminarMaria,
ResponderEliminarObrigada. O mérito é do Agostinho. Seja bem-vinda!
Aninhasamiga
ResponderEliminarExcelente a ideia tua.o texto do AgostinhoIIamigo e a ilustração. Por isso, muito obrigado e parabéns.
Estou à espera de duas coisas, a saber:
1) Quando voltas à Travessa e comentas?
2) sempre queres um textículo meu?
Obrigado
Qjs
Boa estratégia para fazer a pequenada comer!
ResponderEliminarUm texto delicioso, que retrata bem o que cada vez é mais comum em muitas casas!
Post bem interessante.
Felicitações à Ana e ao Agostinho.
Bom fim-de-semana.:))
Vidas tão desconhecidas para muitos e realidades para ainda mais.
ResponderEliminarBeijinhos
Amigo Henrique,
ResponderEliminarClaro que quero um texto seu mal chegue a Lisboa. Daqui espero ter vários diálogos aprazíveis.
Beijinho. :))
Cláudia,
O texto está lindíssimo e faz-me recordar os textos que lia quando era pequena. É um texto de afectos.
O Agostinho é que merece as felicitações.
Obrigada, Cláudia.
Um beijinho. :))
Pérola,
Infelizmente é verdade.
Bom dia e obrigada pela sua visita. :))
Doces momentos...Que bom é recordar. Belo diálogo este, sem dúvida, Ana. Parabéns ao Agostinho que escreve muito bem, de modo simples.
ResponderEliminarBom fim de semana!
Bom fim de semana, Maria João.
ResponderEliminarMuito obrigada. :))
Eu valso e agora valsei com o texto do AGOSTINHO !
ResponderEliminarMuito bem escrito. Sem floreados ou outras artimanhas literárias.
Felicitações aos dois.
Um beijo, Ana.
Quero agradecer as apreciações que generosa e gentilmente aqui deixaram relativamente à minha pessoa, especialmente à Ana que possui o dom da semiótica dos deuses.
ResponderEliminarAgostinho,
ResponderEliminarNão tenho esse dom, não.
Grata pela colaboração.
Boa noite!:))
João,
ResponderEliminarMuito obrigada, o mérito é do Agostinho.
Vejo que gostou também da valsa.
Sim, sabe dançar e com muito prestígio.
Beijinho. :))