31/08/2013

Intervalo para um retrato

Um amigo de infância no Jardim Zoológico de Lisboa

O Elefante

Fabrico um elefante
de meus poucos recursos.
Um tanto de madeira
tirado a velhos móveis
talvez lhe dê apoio.
E o encho de algodão,
de paina, de doçura.
A cola vai fixar
suas orelhas pensas.
A tromba se enovela,
é a parte mais feliz
de sua arquitetura.

Mas há também as presas,
dessa matéria pura
que não sei figurar.
Tão alva essa riqueza
a espojar-se nos circos
sem perda ou corrupção.
E há por fim os olhos,
onde se deposita
a parte do elefante
mais fluida e permanente,
alheia a toda fraude.

Eis o meu pobre elefante
pronto para sair
à procura de amigos
num mundo enfastiado
que já não crê em bichos
e duvida das coisas.
Ei-lo, massa imponente
e frágil, que se abana
e move lentamente
a pele costurada
onde há flores de pano
e nuvens, alusões
a um mundo mais poético
onde o amor reagrupa
as formas naturais.

Vai o meu elefante
pela rua povoada,
mas não o querem ver
nem mesmo para rir
da cauda que ameaça
deixá-lo ir sozinho.

É todo graça, embora
as pernas não ajudem
e seu ventre balofo
se arrisque a desabar
ao mais leve empurrão.
Mostra com elegância
sua mínima vida,
e não há cidade
alma que se disponha
a recolher em si
desse corpo sensível
a fugitiva imagem,
o passo desastrado
mas faminto e tocante.

Mas faminto de seres
e situações patéticas,
de encontros ao luar
no mais profundo oceano,
sob a raiz das árvores
ou no seio das conchas,
de luzes que não cegam
e brilham através
dos troncos mais espessos.
Esse passo que vai
sem esmagar as plantas
no campo de batalha,
à procura de sítios,
segredos, episódios
não contados em livro,
de que apenas o vento,
as folhas, a formiga
reconhecem o talhe,
mas que os homens ignoram,
pois só ousam mostrar-se
sob a paz das cortinas
à pálpebra cerrada.

E já tarde da noite
volta meu elefante,
mas volta fatigado,
as patas vacilantes
se desmancham no pó.
Ele não encontrou
o de que carecia,
o de que carecemos,
eu e meu elefante,
em que amo disfarçar-me.
Exausto de pesquisa,
caiu-lhe o vasto engenho
como simples papel.
A cola se dissolve
e todo o seu conteúdo
de perdão, de carícia,
de pluma, de algodão,
jorra sobre o tapete,
qual mito desmontado.
Amanhã recomeço.

Carlos Drummond de Andrade, in A Rosa do Povo (link)

Vale a pena escutar esta canção e ver a delícia da animação (youtube)

9 comentários:

  1. Bom, Ana, vamos lá ver a reação do público votante...
    Good luck.

    Um beijo.


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  2. Carlos Drumond, um monstro atemporal, um gigante, construido de pedaços de elefantes, construido de realidade, disfarçado de poesia.

    bjs muitos,

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  3. Muito belo post, como sempre! Gosto de elefantes, mas, de momento, os meus inquilinos preferidos no Zoo são as suricatas. A minha filha adorou o video, e eu também Bjns!

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  4. Que bom amigo, Ana! Se calhar, também o conheço... Bonne chance!
    Beijinhos

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  5. Ana, fez-me recuar no tempo... mais concretamente à minha infância e às idas ao ZOO de Lisboa (que foram poucas) e as idas ao Palácio de Cristal, onde existiam muitos animais. Aqui ia quase todas as semanas!!
    Que saudades...
    Gostei imenso do poema de Drummond de Andrade e do vídeo.

    Fotogénico, o nosso amiguinho!!

    Um beijinho.:))

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  6. Construções improváveis, levezas onde era suposto não existirem, atitudes/indiferenças do homem, previsiveis, adivinhadas, normais.
    E o sonho que prevalece.
    Soubessemos cada um de nós construir o nosso próprio elefante e talvez o mundo fosse melhor.
    Que dizer do video? Uma verdadeira delicia! Desenhos que são um hino à ternura, à inocência.
    Obrigada, Ana.

    Beijinho.

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  7. Conheci o Zoo já adulta, quando lá fui com os meus alunos no meu segundo ou terceiro ano de trabalho. E todas as vezes que lá fui, foi com os alunos. Estive lá há uns dois anos.

    Faz-me sempre pena, ver animais tão nobres, presos em espaços que são sempre pequenos.

    Acho o elefante um animal simpático.
    Gostei do desenho animado.
    Um beijinho, Ana. Estamos quase a recomeçar. As férias voaram!

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  8. O vídeo uma ternura
    mas no Zoo de lisboa
    não sei se o elefante ainda só toca o sino
    com uma moeda

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  9. João,
    Não há esperanças. :))
    Beijinho.

    Amigas Vurdóns,
    Obrigada pela presença. :))
    Beijinhos para todas.

    Margarida,
    Ainda não havia suricatas quando visitei há três anos, talvez o Jardim Zoológico. Fico contente por a filha ter gostado. :))
    Beijinho.

    Maria João,
    Obrigada. Conhece de certeza. :))
    Beijinho.

    Cláudia,
    Acho que todas as crianças pequenas e grandes gostam do Zoo. Fico contente pelas recordações.:))
    Beijinho.

    GL,
    Eu é que agradeço o seu olhar para esta postagem.
    Beijinho. :))

    Isabel,
    Eu fui quando era pequena várias vezes, algumas quando ia esperar o meu avô ao aeroporto.
    O jardim Zoológico já passou por graves problemas financeiros. Sempre gostei daquele espaço embora reconheça que é um espaço pequeno. No entanto, a parte educativa é interessante e muitos meninos só tomam contacto com as espécies que lá se encontram porque ele existe como é.
    Os teus alunos de certeza que gostaram muito.
    As férias voaram :(
    Beijinho. :))

    Mar Arável,
    Da última vez que lá fui não experimentei mas quando ia na minha infância ele tocava sempre a troco de escudos, não me recordo de quanto. :))
    Abraço.

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