02/11/2011

Possuir é perder

E porque hoje é dia de finados escolhi O Enterro do Conde de Orgaz de El Greco*


El Greco, Pormenor de "O Enterro do Conde de Orgaz", 1586, Igreja de S. Tomé, Toledo

Cristo, a Virgem, S. João Baptista e o anjo
(Fotografias do guião de Toledo)


Detalhe, o Conde de Orgaz e Santo Agostinho em primeiro plano. Há quem pense que a primeira figura, olhando para fora do quadro, é El Greco



Detalhe, em primeiro plano o filho do pintor, Jorge e Santo Estevão



Igreja de S. Tomé onde está a tela: O Enterro do Conde de Orgaz



A arte livra-nos ilusoriamente da sordidez de sermos

A arte livra-nos ilusoriamente da sordidez de sermos. Enquanto sentimos os males e as injúrias de Hamlet, príncipe da Dinamarca, não sentimos os nossos — vis porque são nossos e vis porque são vis.
O amor, o sono, as drogas e intoxicantes, são formas elementares da arte, ou, antes, de produzir o mesmo efeito que ela. Mas amor, sono, e drogas tem cada um a sua desilusão. O amor farta ou desilude. Do sono desperta-se, e, quando se dormiu, não se viveu. As drogas pagam-se com a ruína de aquele mesmo físico que serviram de estimular. Mas na arte não há desilusão porque a ilusão foi admitida desde o princípio. Da arte não há despertar, porque nela não dormimos, embora sonhássemos. Na arte não há tributo ou multa que paguemos por ter gozado dela.
O prazer que ela nos oferece, como em certo modo não é nosso, não temos nós que pagá-lo ou que arrepender-nos dele.
Por arte entende-se tudo que nos delicia sem que seja nosso — o rasto da passagem, o sorriso dado a outrem, o poente, o poema, o universo objectivo.
Possuir é perder. Sentir sem possuir é guardar, porque é extrair de uma coisa a sua essência.

Bernardo Soares, Livro do Desassossego, Vol.II. Fernando Pessoa, s.d. (Recolha e transcrição dos textos de Maria Aliete Galhoz e Teresa Sobral Cunha. Pref. e Org. de Jacinto do Prado Coelho.) Lisboa: Ática, 1982, p.518

*Notas retiradas de um panfleto da Igreja de S. Tomé com dados do historiador de arte Robert Cumming

9 comentários:

  1. A arte respira-se Ana. E mal de nós quendo já não a conseguirmos respirar.

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  2. Gostei especialmente da última frase "Possuir é perder. Sentir sem possuir é guardar, porque é extrair de uma coisa a sua essência".
    Essa essência fica em nós para sempre e vai influenciando a nossa forma de ver o mundo.
    Beijinhos

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  3. Ana,

    A Isabel disse tudo, o texto todo é belíssimo e verdadeiro.

    bjs das 5

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  4. A arte tem essa magia que é descrita. E ainda bem que possamos viver rodeados de magia.

    Beijo

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  5. Cara ana, como sempre, não há palavras que superem a eloquência de Fernando Pessoa ou a expressão de artistas maiores. Não podia estar mais de acordo com a dimensão inócua, e quando muito prazenteira, da fruição artística.

    Escolhas preciosas!

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  6. George Sand,
    Tem razão, mal de nós quando deixarmos de a respirar. :)

    Isabel,
    A frase que escolheste comunga com a que gosto mais. Estamos em sintonia.:)
    Beijinhos.

    Cozinha dos Vurdóns,´
    Então também estamos em sintonia.
    5 beijinhos. :)))))

    Margarida,
    É um texto com uma dimensão enorme, crítica e deleita, referindo a Arte como um bem maior, não é?
    Beijinhos. :)

    Carlota,
    Magia é a palavra, tem razão, e sem ela a vida era monótona.
    Beijinhos. :)

    R,
    Fernando Pessoa é o poeta da minha eleição, embora goste de muitos mais. É um poeta maior cuja eloquência é inultrapassável.
    Obrigada pelo comentário.
    Abraço! :)

    Pedro,
    Obrigada! :)
    Beijinhos.

    Mar Arável,
    A arte é um constante movimento por isso é tão bela, não é?
    Beijo. :)

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