06/05/2017

Bizarro mas com harmonia

Como é possível tirar harmonia deste instrumento bizarro?



A arte livra-nos ilusoriamente da sordidez de sermos.

A arte livra-nos ilusoriamente da sordidez de sermos. Enquanto sentimos os males e as injúrias de Hamlet, príncipe da Dinamarca, não sentimos os nossos — vis porque são nossos e vis porque são vis.
O amor, o sono, as drogas e intoxicantes, são formas elementares da arte, ou, antes, de produzir o mesmo efeito que ela. Mas amor, sono, e drogas tem cada um a sua desilusão. O amor farta ou desilude. Do sono desperta-se, e, quando se dormiu, não se viveu. As drogas pagam-se com a ruína de aquele mesmo físico que serviram de estimular. Mas na arte não há desilusão porque a ilusão foi admitida desde o princípio. Da arte não há despertar, porque nela não dormimos, embora sonhássemos. Na arte não há tributo ou multa que paguemos por ter gozado dela.
O prazer que ela nos oferece, como em certo modo não é nosso, não temos nós que pagá-lo ou que arrepender-nos dele.
Por arte entende-se tudo que nos delicia sem que seja nosso — o rasto da passagem, o sorriso dado a outrem, o poente, o poema, o universo objectivo.
Possuir é perder. Sentir sem possuir é guardar, porque é extrair de uma coisa a sua essência.

s.d.

Bernardo Soares, Livro do Desassossego, Vol II."Fase confessional", segundo António Quadros (org.) Mem Martins: Europa-América, 1986.



20 comentários:

  1. Realmente, não será fácil, Ana.
    Destaco uma frase deste texto :
    " Mas amor, sono, e drogas tem cada um a sua desilusão. "
    Mas não vou deixar passar em branco esta outra :

    " Possuir é perder. Sentir sem possuir é guardar, porque é extrair de uma coisa a sua essência. "
    E muito mais podia dizer, Ana...

    Um beijo muito amigo e bom fim de semana.

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  2. Ana, Há um poema de Antonio Cícero - "Guardar" que diz: Por isso melhor se guarda o voo de um pássaro /Do que um pássaro sem voos." A arte é libertação... Bom final de semana. Beijos.

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    1. Jane,
      Que bonito. Vou procurar esse poema.
      Obrigada.
      Beijinho. :))

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  3. Os instrumentos musicais são tão interessantes,
    como esta passagem do Livro do Desassossego...
    Que seria de nós se nos faltasse a arte, que
    inclui a literatura e a música, citando apenas
    as fundamentais!
    Um Domingo muito carinhoso e especial.
    Beijinhos
    ~~~~~

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    1. Obrigada, Majo.
      Desejo que o seu Domingo seja igualmente carinhoso e especial. :))
      Beijinho muito grato.:))

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  4. Boa noite. Hei-de voltar amanhã para apreciar devidamente o que a Ana nos trouxe.

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    1. Boa noite Bea,
      Gosto muito de a ver por cá.
      Até amanhã.:))

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  5. Pois...os dedos dos artistas de rua não fazem muita diferença dos de qualquer pianista. Só que estes não têm partitura, tocam de ouvido e utilizam um instrumento que não lembraria a ninguém como musical.

    Bernardo Soares escreve profundamente. Algumas vezes julgo que entra na alma universal de todos nós e parecem-me as suas palavras uma íntima espreitadela, um secreto desvendar. Outras, não o entendo nas contradições que expressa. Mas nem tudo é de compreender.
    Um abraço e bom domingo

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  6. A música e bela e gostei imenso deste excerto do Livro do Desassossego. Obrigada pela partilha. Beijinhos Ana!

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    1. Achei muito interessante esta ideia da arte e tive que a expor.
      Obrigada, ;argarida.
      Beijinho e boa semana!:))

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  7. Imaginação e talento.
    Beijinhos, boa semana

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    1. Talento, sim, pois tirar som daquela "lata" é difícil.:))
      Beijinho. :))

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  8. Uma interessante revelação para mim, que desconhecia!
    E uma bela combinação!
    Beijinhos, Ana e boa semana.:))

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    1. Bom fim de semana, Cláudia.:))
      Obrigada pela visita. :))

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  9. Que bizarro instrumento, de facto :)
    Bernardo Soares é mais um dos heterónimos a entrar para o ano nos programas do 12º ano!
    Belo som, também! Fez-me animar um pouco :(
    Beijinhos, Ana!

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    1. Graça,
      Que bom que te animou.
      Desejo que venha por aí algum sol e que te anime mais e mais.
      Beijinho. :))

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  10. Não importa o bizarro, o instrumento.
    O que importa é aquele que faz arte,
    que põe o brilho da alma à tona,
    que toca e nos toca.
    Importa é aquele que desassossega.

    Bj.

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  11. Adorei esse instrumento tipo disco voador. Não conhecia.
    Seu blog é muito legal, adorei o poema recitado por Villaret.
    Abraços.

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