16/02/2017

"Basium, osculum e suavium"


“Beije-me ele com os beijos da sua boca: Porque teu amor é melhor do que o vinho”
 Cântico dos Cânticos, Bíblia

Há muito, muito tempo, beijar era um acto que se dividia em várias dimensões. Tudo podemos sistematizar e organizar julgando que assim criamos conhecimento. Os romanos tinham 3 tipos de beijos: o basium, trocado entre conhecidos; o osculum, dado apenas em amigos íntimos; e o suavium, que era o beijo dos amantes.
No beijo ao anel dos bispos ainda temos uma herança do mundo romano. Contudo, é o suavium que aqui nos interessa, a mesma raiz linguística que nos remete para o belo texto religioso musicado para coros por muitos dos mais magistrais mestres em composição.
Ao contrário da mundivivência latina, hierarquizada e quase por castas, o beijo nos lábios, na boca, remete-nos para o campo da partilha, e não da hierarquia. No beijo todos são iguais. No beijar, as duas bocas são a imagem da igualdade na dádiva.
E o que são dois amantes? Recordo um amigo que há uns meses dizia numa conferencia que a base da palavra francesa para conhecimento era exactamente a ideia de «nascer com...». "Connaître" = "con"+"naître". No fundo, só conhecemos aqueles com quem nos damos de tal forma que tornamos a nascer. Se o êxtase sexual pode ser solitário, o beijo dificilmente é masturbatório. Há sempre um outro no beijar. É sempre com...
Há beijos que ficam na memória. A intensidade, a doçura, tudo neles nos deixa recordações inesquecíveis. Os lábios, a pele, os jeitos de entrega e de partilha. Sim, recordo a imagem do texto gnóstico em que o beijo de Jesus a Maria Madalena era... de amante ou de transmissão de sabedoria?...
Mais que igualdade, o beijo é, de facto, conhecimento – e agora não o cartesiano, não hierarquisador, mas interior, do ser irrepetível que cada um expressa no beijo. É do campo da Verdade, o in vino veritas, ou inebriamento desse mesmo néctar como o Cântico dos Cânticos nos indica.
O beijo possibilita, numa catadupa de sentimentos, aceso ao íntimo, ao recôndito e tantas vezes escondido ou esquecido. O beijo marca. Um beijo deixa marca como a que ficara no ombro – “toquei-te no ombro e a marca ficou lá”, dizia Sérgio Godinho; se esse toque tivesse sido um beijo, desejo eu, Estrela!
No limite, na troca de um beijo intenso, nas humidades e fluídos variados, há um renascer com a parceira, há um baptismo vivido, uma imersão, na intensidade do Eu e do Tu que se misturam.
Sim, o Beijo é um conhecimento que é entrega, porque partilha. É o «Com» que dá sentido. Um sentido recíproco que torna todos os momentos verdadeiramente únicos, irrepetíveis e de constante re-nascimento.
Renascer, crescer, viver. Tudo se conjuga com beijar.»
Paulo Mendes Pinto, In Visão

14 comentários:

  1. Mas a raíz da palavra conhecer não é francesa. Ou será porque o texto é sobre o beijo e este tem certa conotação parisiense...

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  2. E se eu lhe dissesse que O Cântico dos Cânticos foi lido a meu pedido na cerimónia religiosa do meu casamento??
    Beijinhos

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    1. Que belo, Pedro.
      Gosto muito e tive oportunidade de o ver observado e pintado por Chagall.
      Beijinho. :))

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    1. O mérito é do autor do texto, eu apenas o trago aqui.
      Obrigada.
      Bj. :))

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  4. Excelente destaque, Ana.
    Gostei sobremaneira do texto de Paulo Mendes Pinto,
    não lhe encontrei nenhuma mentira...
    Então, um 'basium' e um 'osculum'...
    Dias felizes, Ana.
    ~~~~~~~~~~~~

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    1. Um basium e um osculum.
      Precisamos de dias felizes com sol.:))

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  5. bem contenta que voce ja me encontrou! estava com saudades....beijos e como sempre teu post e sensacional!

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