04/09/2012

Espelhos e o sonho - Bernardo Soares

Gosto de espelhos na arte e na escrita. Duas acepções diferentes mas que se complementam.


Girolamo Francesco Maria Mazzola, conhecido como Parmigianino, Self-portrait, c. 1523-24
Kunsthistorisches Museum, Vienna (Áustria)


George Lambert, Convex Mirror. c. 1916
National Gallery of Australia 

Todavia há que ter cuidado com os espelhos para não cairmos no lago como Narciso.

Michelangelo Caravaggio Narcissus, 1594-96,
Galleria Nazionale d'Árte Antica, Rome

Em mim o que há de primordial é o hábito e o jeito de sonhar. As circunstâncias da minha vida, desde criança sozinho e calmo, outra[s] forças talvez, amoldando-me de longe, por hereditariedades obscuras a seu sinistro corte, fizeram do meu espírito uma constante corrente de devaneios. Tudo o que eu sou está nisto, e mesmo aquilo que em mim mais parece longe de destacar o sonhador, pertence sem escrúpulo à alma de quem só sonha, elevada ela ao seu maior grau. 
Quero, para meu próprio gosto de analisar-me, ir, à medida que isso me ajeite, ir pondo em palavras os processos mentais que em mim são um só, esse, o de uma vida devotada ao sonho, de uma alma educada só em sonhar.
Vendo-me de fora, como quase sempre me vejo, eu sou um inapto à acção, perturbado ante ter que dar passos e fazer gestos, inábil para falar com os outros, sem lucidez interior para me entreter com o que me cause esforço ao espírito, nem sequência física para me aplicar a qualquer mero mecanismo de entretenimento trabalhando. 
Isso é natural que eu seja. O sonhador entende-se que seja assim. Toda a realidade me perturba. A fala dos outros lança-me numa angústia enorme. A realidade das outras almas surpreende-me constantemente. A vasta rede de inconsciências que é toda a acção que eu vejo, parece-me uma ilusão absurda, sem coerência plausível, nada. 
(...) 
Para dar relevo aos meus sonhos preciso conhecer como é que as paisagens reais e as personagens da vida nos aparecem relevadas. Porque a visão do sonhador não é como a visão do que vê as coisas. No sonho, não há o assentar da vista sobre o importante e o inimportante de um objecto que há na realidade. Só o importante é que o sonhador vê. A realidade verdadeira dum objecto é apenas parte dele; o resto é o pesado tributo que ele paga à matéria em troca de existir no espaço. Semelhantemente, não há no espaço realidade para certos fenómenos que no sonho são palpavelmente reais. Um poente real é imponderável e transitório. Um poente de sonho é fixo e eterno. Quem sabe escrever é o que sabe ver os seus sonhos nitidamente (e é assim) ou ver em sonho a vida, ver a vida imaterialmente, tirando-lhe fotografias com a máquina do devaneio, sobre a qual os raios do pesado, do útil e do circunscrito não têm acção, dando negro na chapa espiritual. 

Bernardo Soares, Livro do Desassossego.  Lisboa: Assírio & Alvim, 1998, pp. 485 e 487. (Edição Richard Zenith)




Parmigianino(Girolamo Mazolla) nasceu em Parma (1503), viveu em Florença, Roma e em Bolonha acabando por falecer na terra natal em 1540. Pintor maneirista.
Caravaggio nasceu em 1571 na Lombardia (Bérgamo ou Milão). Viveu em Milão, Roma, Nápoles, Malta e Sicília. Foi encontrado morto na praia. Pintor barroco
George Lambert (1873-1930) nasceu em S. Petersburgo, viveu na Alemanha, em Inglaterra e Austrália onde faleceu. Pintor do romantismo. 

9 comentários:

  1. Feliz associação: o espelho, a arte, as palavras de Pessoa/Soares. Afinal, que realidade se mostra no espelho? Que realidade revela o escritor? Um post que nos permite refletir por toda a semana... Beijo.

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  2. Belíssimo post, ana.
    Gosto de Simply Red.
    Holding Back the Years, então, é sublime.

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  3. O espelho mostra tanto e ao mesmo tempo tão pouco...
    O espelho não mostra a nossa essência, o que realmente somos.
    E, Pessoa tinha um conhecimento tão real de si próprio, que até chega a ser assustador!
    Tão consciente e conhecedor de si próprio e tão sonhador... uma contradição?!
    Espelho meu, espelho meu...!!
    Simply Red têm músicas magníficas.
    Um beijinho "fresquinho" neste dia quente.:))

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  4. Gostei muito, sobretudo dos quadros. Gosto imenso de quadros com espelhos. O segundo não conhecia. Bjs!

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  5. Lindo, lindo!
    Como diz a Margarida, os quadros são fantásticos!...
    O Parmigianino é maravilhoso e esse pormenor do rosto no espelho é muito bonito.
    Gosto dos Simply Red, claro.
    Bernardo Soares sempre ele...
    E sempre os espelhos.
    Beijinhos

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  6. Realmente Ana, compartilho da sua colocação. Espelhos na escrita descobrem mundos e no desenho, abrem abismos.

    bjs meus,
    desculpe o desaparecimento, mas as coisas andam apertadas por aqui.

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  7. Jane,
    Muito obrigada pelas palavras e a reflexão que nos impõem. :)
    Beijinho.

    Pedro,
    Também gosto dos Simply Red e da música que refere. Obrigada.
    Um beijinho.:)

    Cláudia,
    Muito obrigada. FP era um homem muito rico e misterioso, pelo menos para mim. À medida que o vou descobrindo ainda se torna mais misterioso. Parece um paradoxo mas acontece.
    Beijinho, hoje estão aqui 36º :)

    Margarida,
    Sei que gosta de quadros com espelhos. Já vi belíssimas telas expostas no Memórias e Imagens.
    Não consigo comunicar no seu blogue. :(
    Obrigada pela visita!
    Beijinhos.:)

    Maria João,
    Obrigada. Também não consigo comunicar no seu blogue. :(
    Gosto muito do Livro do Desassossego mas é para ir lendo, é denso e belo mas nem sempre fácil.
    Beijinho. :)

    Queridas amigas Vurdóns,
    O mesmo se passa comigo. Tenho saudades.
    Um beijinho + 8 especiais pelo vosso trabalho!:))))))))

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  8. beleza, querida Ana, teu post!!!!
    obrigada por ser como voce é!
    bjos

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  9. Myra,
    Obrigada pelas palavras tão amáveis.
    Beijinho. :)

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