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17/01/2015

Correspondência muito especial

Fernando Pessoa
[Carta a Adolfo Rocha - Jun. 1930]

Meu prezado camarada:
Casa Miguel Torga, Coimbra
Recebi a sua carta que agradeço, e vou procurar expor em frases sem imagens o sentido daquilo que lhe havia escrito. Devo explicar, antes de mais nada, que, tendo tardado já uns dias em agradecer o seu livro, escrevi uma carta rápida, para não demorar mais. Sucede que, quando escrevo rapidamente, isto é, sem ter tempo de desdobrar em razões o que digo, e concisamente, por escrever rapidamente, o que escrevo assume naturalmente uma forma metafórica, e não lógica. Isto lhe explicará a confusão, ou a obscuridade, que necessariamente existiria na minha carta. O que não havia nela era o dogmatismo que parece supor que continha. Nunca sou dogmático, porque o não pode ser quem de dia para dia muda de opinião, e é, por temperamento, instável e flutuante. Vamos, que consigo o caso não foi grave: já me sucedeu pior, com um poeta espanhol — ainda que porventura um pouco por imperfeito conhecimento da língua — o ser o conciso tomado por seco, e o metafórico por irónico.
Em substância, e expondo discursivamente, o ponto de vista que lhe expus é o seguinte:
1) Toda a arte se baseia na sensibilidade, e essencialmente na sensibilidade;

2) A sensibilidade é pessoal e intransmissível;

3) Para se transmitir a outrem o que sentimos, e é isso que na arte buscamos fazer, temos que decompor a sensação, rejeitando nela o que é puramente pessoal, aproveitando nela o que, sem deixar de ser individual, é todavia susceptível de generalidade, portanto, compreensível, não direi já pela inteligência, mas ao menos pela sensibilidade dos outros.
Torga no jardim da casa de Coimbra
4) Este trabalho intelectual tem dois tempos: a) a intelectualização directa e instintiva da sensibilidade, pela qual ela se converte em transmissível (é isto que vulgarmente se chama “inspiração”, quer dizer, o encontrar por instinto as frases e os ritmos que reduzam a sensação à frase intelectual; b) a reflexão crítica sobre essa intelectualização, que sujeita o produto artístico elaborado pela “inspiração” a um processo inteiramente objectivo — construção, ou ordem lógica, ou simplesmente conceito de escola ou corrente.
5) Não há arte intelectual, a não ser, é claro, a arte de raciocinar. Simplesmente, do trabalho de intelectualização, em cuja operação consiste a obra de arte como coisa, não só pensada, mas feita, resultam dois tipos de artista: a) o inspirado ou espontâneo, em quem o reflexo crítico é fraco ou nulo, o que não quer dizer nada quanto ao valor da obra; b) o reflexivo e crítico, que elabora, por necessidade orgânica, o já elaborado.

Dir-lhe-ei, e estou certo que concordará comigo, que nada há mais raro neste mundo que um artista espontâneo — isto é, um homem que intelectualiza a sua sensibilidade só o bastante para ela ser aceitável pela sensibilidade alheia; que não critica o que faz, que não submete o que faz a um conceito exterior de escola ou de moda, ou de “maneira”, não de ser, mas de “dever ser”.

Na sua aplicação ao seu livro, estas considerações tomam para mim a forma seguinte: 1) a sua sensibilidade é boa, e, por natureza, de tipo intelectual; 2) pode, portanto, ser um poeta espontâneo, sem ter que sobreintelectualizar demais ou recorrer a uma atitude reflexiva ou crítica; 3) para isso, porém, convinha-lhe (a meu ver, bem entendido — mas era a minha opinião, que não a de outrem, que lhe dava), ou a) focar num ponto nítido e universalmente transmissível a intelectualização da sensação, ou b) distribuir mais igualmente a intelectualização pela extensão da sensação.

Isto não é, talvez, muito claro; não sei, porém, como o diga melhor. Servir-me-ei de exemplos. Um homem que era, e suponho (embora nada publique, nem talvez escreva) ainda é, o mais curioso espírito crítico português, Manuel António de Almeida, escreveu, em 1912, no “Inquérito Literário” de Boavida Portugal, esta definição da arte moderna: “Uma representação central nítida, em torno da qual bóia todo um nimbo de coisas evocadas.” Isto representa muito bem o que quero indicar como o primeiro processo que lhe sugeri. O segundo seria, servindo-me de uma expressão de igual tipo, “uma representação central vaga, em torno da qual brilham, nítidas, e para lhe destacar o vago, todas as representações secundárias.”

É este, meu Camarada, o desenvolvimento mais claro que, de momento, e para não tardar em responder-lhe, posso fazer do que na minha primeira carta lhe disse translatamente .

Peço-lhe que creia no verdadeiro apreço de ......
6-1930

Fernando Pessoa, Páginas de Estética e de Teoria Literárias. (Textos estabelecidos e prefaciados por Georg Rudolf Lind e Jacinto do Prado Coelho.) Lisboa: Ática, 1966, p. 69. Daqui

Obrigada. 

Miguel Torga, 20 anos após o desaparecimento do poeta.

07/05/2013

Desassossego

Vivemos apenas do sonho que é a ilusão 
de quem não pode ter ilusões.

Bernardo Soares, no filme de João Botelho: O filme do Desassossego.

Andrew Wyeth (1917-2009),Wind from the sea, 1947



O filme,  como o vento, esvazia-nos de tanta beleza.

«A minha pátria é a língua portuguesa.», 
citação redutora de todo o monólogo de Bernardo Soares.

[Um filme bem urdido e notavelmente transposto para o século em que vivemos. 
Não é fácil.]



Uma música que associo a este filme por causa do sonho e da ilusão.

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