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12/05/2013

Carta

(Pierpont Morgan Library, New York(Museum of Fine Arts, Boston)



Carta a Deus 

Deus, Bem avisaste que eras um Deus invejoso e vingativo. 
Também sei que Job era um caso-limite: uma ameaça do que eras capaz.  Nem eu nem a Maria João temos um milésimo da obediência e da resignação de Job. E castigaste-nos menos. Mas foi de mais. 
De certeza absoluta que nos amamos mais um ao outro do que te amamos a Ti. Sabemos que isto não está certo. Mas foste Tu que nos fizeste assim. Admite: deste-nos liberdade de mais. Foste presunçoso: pensaste que Te escolheríamos sempre primeiro. Enganaste-Te. 
Quando inventaste o amor, esqueceste-te de que seria mais popular entre os seres humanos do que entre os seres humanos e Tu. Por uma questão de tangibilidade. E, desculpa lá, de feitio. 
Tu, Deus, tens o pior das arrogâncias feminina e masculina. Achas que só existes Tu. Como Deus, até é capaz de ser verdade. Mas, para quereres ser um Deus real e humanamente amado, tens de aprender a ser um amor secundário. 
Sabemos que és Tu que mandas e acreditamos que há uma razão para tudo o que fazes, mesmo quando toda a gente se lixa, porque não nos deste cabeça para Te compreender. Esta deficiência foi uma decisão tua: não quiseste dar-nos a inteligência necessária. Mas deste-nos cabeça suficiente para Te dizer, cara a cara, que nos preocupamos mais com os entes amados do que contigo. 
Ajuda a Maria João, se puderes. Se não puderes, não dificultes a vida a quem pode ajudar. Faz o que só um Deus pode fazer: reduz-te à tua significância. Que é tão grande. 

Miguel Esteves Cardoso, in jornal "Público" de 3 de Maio de 2012.

Miguel Esteves Cardoso, Como é Linda a Puta da Vida.  Porto Editora, 2013, p. 13.

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