William Blake, The Book of Job: When the Morning Stars Sang Together, 1820,
(Pierpont Morgan Library, New York(Museum of Fine Arts, Boston)
Deus, Bem avisaste que eras um Deus invejoso e vingativo.
Também sei que Job era um caso-limite: uma ameaça do que eras capaz. Nem eu nem a Maria João temos um milésimo da obediência e da resignação de Job. E castigaste-nos menos. Mas foi de mais.
De certeza absoluta que nos amamos mais um ao outro do que te amamos a
Ti. Sabemos que isto não está certo. Mas foste Tu que nos fizeste assim. Admite: deste-nos liberdade de mais. Foste presunçoso: pensaste
que Te escolheríamos sempre primeiro. Enganaste-Te.
Quando inventaste
o amor, esqueceste-te de que seria mais popular entre os seres humanos
do que entre os seres humanos e Tu. Por uma questão de tangibilidade.
E, desculpa lá, de feitio.
Tu, Deus, tens o pior das arrogâncias
feminina e masculina. Achas que só existes Tu. Como Deus, até é capaz
de ser verdade. Mas, para quereres ser um Deus real e humanamente
amado, tens de aprender a ser um amor secundário.
Sabemos que és Tu
que mandas e acreditamos que há uma razão para tudo o que fazes, mesmo
quando toda a gente se lixa, porque não nos deste cabeça para Te
compreender. Esta deficiência foi uma decisão tua: não quiseste dar-nos a inteligência necessária.
Mas deste-nos cabeça suficiente para Te dizer, cara a cara, que nos
preocupamos mais com os entes amados do que contigo.
Ajuda a Maria João, se puderes. Se não puderes, não dificultes a vida
a quem pode ajudar. Faz o que só um Deus pode fazer: reduz-te à tua
significância. Que é tão grande.
Miguel Esteves Cardoso, in jornal "Público" de 3 de Maio de 2012.
Miguel Esteves Cardoso, Como é Linda a Puta da Vida. Porto Editora, 2013, p. 13.