30/01/2015

Conversa com a almofada

Almofada nuvem smile

38 .
VISÃO QUE NÃO É VISÃO

Ouvi em sonho uma voz cantar ao longe.
«Contra os canhões, marchar, marchar.»
Falava ao exército, ao povo português. Era a voz da justiça.
Cessou. De repente retornou a sua canção. Estranho... Não pareciam as mesmas palavras.
Era a voz da justiça era; falava como dantes ao povo ao exército português. Mas para dizer.
«Contra os ladrões, calar, calar.»
Estranha alucinação.


Fernando Pessoa, Cartas, Visões e Outros Textos do Sr. Pantaleão
(Edição de Ana Maria Freitas e Manuela Parreira da Silva) Lisboa: Assírio e Alvim, 2014, p. 63.

(Um presente especial. Obrigada)


27/01/2015

Holocausto- In Memoriam

No dia em que se assinala o Dia Internacional da Memória do Holocausto recordo a figura de Arístides de Sousa Mendes. Uma exposição que vi recentemente no Centro de Coordenação Cultural de Viseu: 

Coragem em tempo de Medo: Arístides de Sousa Mendes



















2. Sala Vermelha - sala do terror     1. Sala Azul - sala biográfica. 

 Sala do Terror - O Nacional Socialismo - Hitler e o poder
Sala Roxa - sala que foca as dificuldades sentidas. Leis de Nuremberga que limitaram a passagem de vistos.

Sala Laranja - O cônsul ajudou a fugir muitos judeus dando vistos quando já não o podia fazer.
Crianças refugiadas em Portugal, 1941
Sala Verde - a sala da homenagem e reconhecimento
Placa de homenagem no Bosque dos Justos, Jerusalém                    Retrato em Jerusalém

Homenagem no Parlamento Europeu e na Assembleia da República: 
Cruz da Ordem Militar de Cristo



... com o sofrimento de tantos judeus.

24/01/2015

A criança que pensa em fadas

Remédios Varo, Trovador, 1959

María de los Remedios Alicia Rodriga Varo y Uranga nasceu em 1908 em Anglès, Espanha 
e faleceu em 1963 na Cidade do México,  México.


A CRIANÇA QUE PENSA EM FADAS E ACREDITA NAS FADAS

A criança que pensa em fadas e acredita nas fadas
Age como um deus doente, mas como um deus.
Porque embora afirme que existe o que não existe
Sabe como é que as cousas existem, que é existindo,
Sabe que existir existe e não se explica,
Sabe que não há razão nenhuma para nada existir,
Sabe que ser é estar em algum ponto
Só não sabe que o pensamento não é um ponto qualquer.


Alberto Caeiro, Poemas Inconjuntos, Lisboa: Presença, 1994, p. 137.

22/01/2015

Hay una corneta que flota en el cielo


Hay una corneta
que flota en el cielo,
muy lejos del suelo
ligera y coqueta.

Hay una corneta
que imita a una nube:
ya baja, ya sube,
jamás se está quieta.

Hay una corneta
de vivos reflejos:
parecen espejos
buscando una meta.

Hay una corneta,
serpiente de espuma,
que deja a la bruma
de sueños repleta.


Poemas Infantiles  (popular? Publicado por García Teijeiro)


20/01/2015

Mr Turner - Debaixo do céu

Não vi o filme de Join Mike Leigh: Mr Turner, apenas vi alguns trailers, confesso com muita pena minha. Obteve a nomeação para Palma de Ouro no Festival de Cannes.

Mary Somerville: 
 “The universe is chaotic and you make us see it. You are a man of great vision, Mr. Turner.”

Debaixo do céu a poente, ao fim da tarde.
Debaixo do céu a nascente, ao fim da tarde (à mesma hora)

M.W.Turner. Sun Setting over a Lake. 1840. Tate Gallery, London



Nos bastidores do filme

17/01/2015

Correspondência muito especial

Fernando Pessoa
[Carta a Adolfo Rocha - Jun. 1930]

Meu prezado camarada:
Casa Miguel Torga, Coimbra
Recebi a sua carta que agradeço, e vou procurar expor em frases sem imagens o sentido daquilo que lhe havia escrito. Devo explicar, antes de mais nada, que, tendo tardado já uns dias em agradecer o seu livro, escrevi uma carta rápida, para não demorar mais. Sucede que, quando escrevo rapidamente, isto é, sem ter tempo de desdobrar em razões o que digo, e concisamente, por escrever rapidamente, o que escrevo assume naturalmente uma forma metafórica, e não lógica. Isto lhe explicará a confusão, ou a obscuridade, que necessariamente existiria na minha carta. O que não havia nela era o dogmatismo que parece supor que continha. Nunca sou dogmático, porque o não pode ser quem de dia para dia muda de opinião, e é, por temperamento, instável e flutuante. Vamos, que consigo o caso não foi grave: já me sucedeu pior, com um poeta espanhol — ainda que porventura um pouco por imperfeito conhecimento da língua — o ser o conciso tomado por seco, e o metafórico por irónico.
Em substância, e expondo discursivamente, o ponto de vista que lhe expus é o seguinte:
1) Toda a arte se baseia na sensibilidade, e essencialmente na sensibilidade;

2) A sensibilidade é pessoal e intransmissível;

3) Para se transmitir a outrem o que sentimos, e é isso que na arte buscamos fazer, temos que decompor a sensação, rejeitando nela o que é puramente pessoal, aproveitando nela o que, sem deixar de ser individual, é todavia susceptível de generalidade, portanto, compreensível, não direi já pela inteligência, mas ao menos pela sensibilidade dos outros.
Torga no jardim da casa de Coimbra
4) Este trabalho intelectual tem dois tempos: a) a intelectualização directa e instintiva da sensibilidade, pela qual ela se converte em transmissível (é isto que vulgarmente se chama “inspiração”, quer dizer, o encontrar por instinto as frases e os ritmos que reduzam a sensação à frase intelectual; b) a reflexão crítica sobre essa intelectualização, que sujeita o produto artístico elaborado pela “inspiração” a um processo inteiramente objectivo — construção, ou ordem lógica, ou simplesmente conceito de escola ou corrente.
5) Não há arte intelectual, a não ser, é claro, a arte de raciocinar. Simplesmente, do trabalho de intelectualização, em cuja operação consiste a obra de arte como coisa, não só pensada, mas feita, resultam dois tipos de artista: a) o inspirado ou espontâneo, em quem o reflexo crítico é fraco ou nulo, o que não quer dizer nada quanto ao valor da obra; b) o reflexivo e crítico, que elabora, por necessidade orgânica, o já elaborado.

Dir-lhe-ei, e estou certo que concordará comigo, que nada há mais raro neste mundo que um artista espontâneo — isto é, um homem que intelectualiza a sua sensibilidade só o bastante para ela ser aceitável pela sensibilidade alheia; que não critica o que faz, que não submete o que faz a um conceito exterior de escola ou de moda, ou de “maneira”, não de ser, mas de “dever ser”.

Na sua aplicação ao seu livro, estas considerações tomam para mim a forma seguinte: 1) a sua sensibilidade é boa, e, por natureza, de tipo intelectual; 2) pode, portanto, ser um poeta espontâneo, sem ter que sobreintelectualizar demais ou recorrer a uma atitude reflexiva ou crítica; 3) para isso, porém, convinha-lhe (a meu ver, bem entendido — mas era a minha opinião, que não a de outrem, que lhe dava), ou a) focar num ponto nítido e universalmente transmissível a intelectualização da sensação, ou b) distribuir mais igualmente a intelectualização pela extensão da sensação.

Isto não é, talvez, muito claro; não sei, porém, como o diga melhor. Servir-me-ei de exemplos. Um homem que era, e suponho (embora nada publique, nem talvez escreva) ainda é, o mais curioso espírito crítico português, Manuel António de Almeida, escreveu, em 1912, no “Inquérito Literário” de Boavida Portugal, esta definição da arte moderna: “Uma representação central nítida, em torno da qual bóia todo um nimbo de coisas evocadas.” Isto representa muito bem o que quero indicar como o primeiro processo que lhe sugeri. O segundo seria, servindo-me de uma expressão de igual tipo, “uma representação central vaga, em torno da qual brilham, nítidas, e para lhe destacar o vago, todas as representações secundárias.”

É este, meu Camarada, o desenvolvimento mais claro que, de momento, e para não tardar em responder-lhe, posso fazer do que na minha primeira carta lhe disse translatamente .

Peço-lhe que creia no verdadeiro apreço de ......
6-1930

Fernando Pessoa, Páginas de Estética e de Teoria Literárias. (Textos estabelecidos e prefaciados por Georg Rudolf Lind e Jacinto do Prado Coelho.) Lisboa: Ática, 1966, p. 69. Daqui

Obrigada. 

Miguel Torga, 20 anos após o desaparecimento do poeta.

15/01/2015

"o tamanho ilude"

A escala é real mas também é ilusão. Não precisamos de muito espaço se a nossa mente voar. Comecei a ler "Veneza pode Esperar, Diário I". Nunca estive em Veneza mas sei que ela pode esperar porque tenho em mim que lá irei. Estive "numa" Veneza ou melhor na "Roma" do Oriente: Goa, terra da cor, da seda e das fragrâncias. Rita Ferro levou-me ao quarto/ sala/ cozinha/ escritório onde vivi em Goa. A vida é a ilusão que dela criamos. 

Em especial para um amigo que vai mudar de casa.

Quarta-feira, 8 de Maio de 2013
23:00 h                                                                                                                       Goa, Sedas


Gosto muito desta casa, para onde me mudei há três meses. Sempre vivi em casas grandes, esta é a mais pequena, mas também é a primeira vez que vivo sozinha, universalmente sozinha. Casaram-se todos: o Miguel, a Marta, o Salvador. Em rigor não preciso de mais espaço. Uma sala, um escritório, um quarto - às vezes sinto-me num hotel, e a ideia diverte-me. A casa tem luz, as pinturas são novas, os armários lacados - gosto de estar aqui. A anterior era maior e o acesso à garagem mais cómodo, mas aprendi a tempo que o tamanho ilude e pode ser uma fraude no bem-estar das pessoas. A escala menor dá-nos outra calma, a ilusão de controlo é maior. (...)
Ainda vivo no Estoril. Como troquei o azul do mar pelo verde da folhagem, não me sinto desfalcada. De manhã, oiço o canto dos pássaros e, ao entardecer, os grandes silêncios do campo.

Rita Ferro, Veneza Pode Esperar, Diário 1,  Lisboa: Dom Quixote, 2014, p. 16-17.


Sadko, uma ópera para mim desconhecida.

13/01/2015

Afectos que (en)cantam a alma

CANTOR DA ALMA

Chamou-me cantor da alma
Por ser poeta
Por cantar e contar
O que o outro chora
E sente

Que razão terei
Que não esta natureza
Que me embala
E nos envolve?

E chamou-me poeta...

Odete  Semedo

Odete Costa Semedo, Entre o Ser e o Amar. Odete Semedo e INEP, Instituto Nacional de Estudos e Pesquisa, República da Guiné-Bissau, 1996, p.43. Edição bilingue em português e kriol, 
Livros fac-similados do Público.

Diálogos: poesia e prosa, um tudo nada que faz percorrer o pensamento. Por vezes recebemos tanto e damos tão pouco. Obrigada. 

Myra Landau, Jarro vermelho [intitulado por mim]                 
    
Nesta vida que se nos afigura por vezes como um vasto terreno deserto sem marcos de informação, no meio de  linhas de fuga e dos horizontes perdidos, gostaríamos de encontrar pontos de referência, de estabelecer uma espécie de cadastro para iludir a impressão de navegar ao acaso. Então, tecemos laços, procuramos tornar mais estáveis encontros ocasionais. Calei-me de olhos fixos na pilha das revistas. No meio da mesa de centro, um grande cinzeiro amarelo que continha a inscrição: Cinzano.   (...) urgia descobrir um sentido para tudo isto.

Patrick Modiano, No Café da Juventude Perdida. Lisboa: Asa, 2014 (2ª edição), p. 36


10/01/2015

As plantas deslocam-se



As Plantas deslocam-se

as plantas deslocam-se
fendem a parte granítica da memória
os quartzos e as argilas provocam a amnésia
o corpo alimenta-se de resina
tolhe-se cintilante a um canto da casa
serão os pastores capazes de reacender o mágico fogo?
a terra incha abre-se às sementes mais amargas
o jardim abandonado nos lábios das crianças
os animais vêm beber em teus lábios
água púrpura e breves nuvens de açúcar
e no instante de um cometa eclode a última flor viva
o regresso é uma queda dolorosa de órbita em órbita
no entanto
nenhum obstáculo foi suficiente para impedir
este cíclico regresso à terra
nem mesmo o inflexível rigor da morte extravasou
os fascinados rebanhos

Al Berto, O Medo



08/01/2015

Homenagem

A Georges Wolinski, Jean Cabut - o Cabu, Stephane Charbonnier - o Charb e Tignous e a todos os que pereceram por satirizarem e/ou defenderem o pensamento livre: em nome da liberdade.

Imagem daqui
Candles are lit in Paris in memory of the 12 victims

Em nome da liberdade de imprensa, homenagem à equipa do semanário
Charlie Hebdo, Paris, 7-01-2015

A liberdade de expressão é o coração da humanidade
Salman Rushdie

07/01/2015

O poder dos livros...

Comecei a ler o livro: No Café da Juventude Perdida de Patrick Modiano. Dá vontade de encontrar um café assim...
Causa, no entanto, alguma nostalgia juntamente com o Inverno. Apetece dizer: Carpe Diem, pega na mochila e parte.
Janelas de Paris


O ano começa no mês de Outubro. É o início das aulas e julgo ser a estação dos projectos. Portanto, se Louki entrou no Condé pela primeira vez em Outubro, foi por ter rompido com uma parte da sua vida  e querer COMEÇAR DE NOVO, como se lê nos romances.

Patrick Modiano, No Café da Juventude Perdida. Lisboa: Asa, 2014 (2ª edição), p. 17.




Três vozes incontornáveis

03/01/2015

Ode

Este ano comemoram-se os 100 anos da publicação da Revista Orpheu. 
Daí começar o ano com a Ode Triunfal [?]





Ode Triunfal

À dolorosa luz das grandes lâmpadas eléctricas da fábrica 
Tenho febre e escrevo.
Escrevo rangendo os dentes, fera para a beleza disto, 
Para a beleza disto totalmente desconhecida dos antigos.

Ó rodas, ó engrenagens, r-r-r-r-r-r-r eterno!
Forte espasmo retido dos maquinismos em fúria!
Em fúria fora e dentro de mim,
Por todos os meus nervos dissecados fora,
Por todas as papilas fora de tudo com que eu sinto!
Tenho os lábios secos, ó grandes ruídos modernos,
De vos ouvir demasiadamente de perto,
E arde-me a cabeça de vos querer cantar com um excesso
De expressão de todas as minhas sensações,
Com um excesso contemporâneo de vós, ó máquinas!

Em febre e olhando os motores como a uma Natureza tropical —
Grandes trópicos humanos de ferro e fogo e força —
Canto, e canto o presente, e também o passado e o futuro,
Porque o presente é todo o passado e todo o futuro
E há Platão e Virgílio dentro das máquinas e das luzes eléctricas
Só porque houve outrora e foram humanos Virgílio e Platão,
E pedaços do Alexandre Magno do século talvez cinquenta,
Átomos que hão-de ir ter febre para o cérebro do Ésquilo do século cem,
Andam por estas correias de transmissão e por estes êmbolos e por estes volantes,
Rugindo, rangendo, ciciando, estrugindo, ferreando,
Fazendo-me um acesso de carícias ao corpo numa só carícia à alma.
Ah, poder exprimir-me todo como um motor se exprime!
Ser completo como uma máquina!
Poder ir na vida triunfante como um automóvel último-modelo!
Poder ao menos penetrar-me fisicamente de tudo isto,
Rasgar-me todo, abrir-me completamente, tornar-me passento
A todos os perfumes de óleos e calores e carvões
Desta flora estupenda, negra, artificial e insaciável!

Fraternidade com todas as dinâmicas!
Promíscua fúria de ser parte-agente
Do rodar férreo e cosmopolita
Dos comboios estrénuos,
Da faina transportadora-de-cargas dos navios,
Do giro lúbrico e lento dos guindastes,
Do tumulto disciplinado das fábricas,
E do quase-silêncio ciciante e monótono das correias de transmissão!

Horas europeias, produtoras, entaladas
Entre maquinismos e afazeres úteis!
Grandes cidades paradas nos cafés,
Nos cafés — oásis de inutilidades ruidosas
Onde se cristalizam e se precipitam
Os rumores e os gestos do útil
E as rodas, e as rodas-dentadas e as chumaceiras do Progressivo!
Nova Minerva sem-alma dos cais e das gares!
Novos entusiasmos de estatura do Momento!
Quilhas de chapas de ferro sorrindo encostadas às docas,
Ou a seco, erguidas, nos planos-inclinados dos portos!
Actividade internacional, transatlântica, Canadian-Pacific!
Luzes e febris perdas de tempo nos bares, nos hotéis,
Nos Longchamps e nos Derbies e nos Ascots,
E Piccadillies e Avenues de L'Opéra que entram
Pela minh'alma dentro!

Hé-lá as ruas, hé-lá as praças, hé-lá-hô la foule!
Tudo o que passa, tudo o que pára às montras!
Comerciantes; vários; escrocs exageradamente bem-vestidos;
Membros evidentes de clubes aristocráticos;
Esquálidas figuras dúbias; chefes de família vagamente felizes
E paternais até na corrente de oiro que atravessa o colete
De algibeira a algibeira!
Tudo o que passa, tudo o que passa e nunca passa!
Presença demasiadamente acentuada das cocottes
Banalidade interessante (e quem sabe o quê por dentro?)
Das burguesinhas, mãe e filha geralmente,
Que andam na rua com um fim qualquer;
A graça feminil e falsa dos pederastas que passam, lentos;
E toda a gente simplesmente elegante que passeia e se mostra
E afinal tem alma lá dentro!

(Ah, como eu desejaria ser o souteneur disto tudo!)

A maravilhosa beleza das corrupções políticas,
Deliciosos escândalos financeiros e diplomáticos,
Agressões políticas nas ruas,
E de vez em quando o cometa dum regicídio
Que ilumina de Prodígio e Fanfarra os céus
Usuais e lúcidos da Civilização quotidiana!

Notícias desmentidas dos jornais,
Artigos políticos insinceramente sinceros,
Notícias passez à-la-caisse, grandes crimes —
Duas colunas deles passando para a segunda página!
O cheiro fresco a tinta de tipografia!
Os cartazes postos há pouco, molhados!
Vients-de-paraître amarelos como uma cinta branca!
Como eu vos amo a todos, a todos, a todos,
Como eu vos amo de todas as maneiras,
Com os olhos e com os ouvidos e com o olfacto
E com o tacto (o que palpar-vos representa para mim!)
E com a inteligência como uma antena que fazeis vibrar!
Ah, como todos os meus sentidos têm cio de vós!

Adubos, debulhadoras a vapor, progressos da agricultura!
Química agrícola, e o comércio quase uma ciência!
Ó mostruários dos caixeiros-viajantes,

Dos caixeiros-viajantes, cavaleiros-andantes da Indústria,
Prolongamentos humanos das fábricas e dos calmos escritórios!

Ó fazendas nas montras! Ó manequins! Ó últimos figurinos!
Ó artigos inúteis que toda a gente quer comprar!
Olá grandes armazéns com várias secções!
Olá anúncios eléctricos que vêm e estão e desaparecem!
Olá tudo com que hoje se constrói, com que hoje se é diferente de ontem!
Eh, cimento armado, beton de cimento, novos processos!
Progressos dos armamentos gloriosamente mortíferos!
Couraças, canhões, metralhadoras, submarinos, aeroplanos! 

Amo-vos a todos, a tudo, como uma fera.
Amo-vos carnivoramente.
Pervertidamente e enroscando a minha vista
Em vós, ó coisas grandes, banais, úteis, inúteis,
Ó coisas todas modernas,
Ó minhas contemporâneas, forma actual e próxima
Do sistema imediato do Universo!
Nova Revelação metálica e dinâmica de Deus!

Ó fábricas, ó laboratórios, ó music-halls, ó Luna-Parks,
Ó couraçados, ó pontes, ó docas flutuantes —
Na minha mente turbulenta e encandescida
Possuo-vos como a uma mulher bela,
Completamente vos possuo como a uma mulher bela que não se ama,
Que se encontra casualmente e se acha interessantíssima.

Eh-lá-hô fachadas das grandes lojas!
Eh-lá-hô elevadores dos grandes edifícios!
Eh-lá-hô recomposições ministeriais!
Parlamentos, políticas, relatores de orçamentos,
Orçamentos falsificados!
(Um orçamento é tão natural como uma árvore
E um parlamento tão belo como uma borboleta).

Eh-lá o interesse por tudo na vida,
Porque tudo é a vida, desde os brilhantes nas montras
Até à noite ponte misteriosa entre os astros
E o mar antigo e solene, lavando as costas
E sendo misericordiosamente o mesmo
Que era quando Platão era realmente Platão
Na sua presença real e na sua carne com a alma dentro,
E falava com Aristóteles, que havia de não ser discípulo dele.

Eu podia morrer triturado por um motor
Com o sentimento de deliciosa entrega duma mulher possuída.
Atirem-me para dentro das fornalhas!
Metam-me debaixo dos comboios!
Espanquem-me a bordo de navios!
Masoquismo através de maquinismos!
Sadismo de não sei quê moderno e eu e barulho!

Up-lá hô jockey que ganhaste o Derby,
Morder entre dentes o teu cap de duas cores!

(Ser tão alto que não pudesse entrar por nenhuma porta!
Ah, olhar é em mim uma perversão sexual!)

Eh-lá, eh-lá, eh-lá, catedrais!
Deixai-me partir a cabeça de encontro às vossas esquinas.

E ser levado da rua cheio de sangue
Sem ninguém saber quem eu sou!

Ó tramways, funiculares, metropolitanos,
Roçai-vos por mim até ao espasmo!
Hilla! hilla! hilla-hô!
Dai-me gargalhadas em plena cara,
Ó automóveis apinhados de pândegos e de putas,
Ó multidões quotidianas nem alegres nem tristes das ruas,
Rio multicolor anónimo e onde eu me posso banhar como quereria!
Ah, que vidas complexas, que coisas lá pelas casas de tudo isto!
Ah, saber-lhes as vidas a todos, as dificuldades de dinheiro,
As dissensões domésticas, os deboches que não se suspeitam,
Os pensamentos que cada um tem a sós consigo no seu quarto
E os gestos que faz quando ninguém pode ver!
Não saber tudo isto é ignorar tudo, ó raiva,
Ó raiva que como uma febre e um cio e uma fome
Me põe a magro o rosto e me agita às vezes as mãos
Em crispações absurdas em pleno meio das turbas
Nas ruas cheias de encontrões!

Ah, e a gente ordinária e suja, que parece sempre a mesma,
Que emprega palavrões como palavras usuais,
Cujos filhos roubam às portas das mercearias
E cujas filhas aos oito anos — e eu acho isto belo e amo-o! —
Masturbam homens de aspecto decente nos vãos de escada.
A gentalha que anda pelos andaimes e que vai para casa
Por vielas quase irreais de estreiteza e podridão.
Maravilhosamente gente humana que vive como os cães
Que está abaixo de todos os sistemas morais,
Para quem nenhuma religião foi feita,
Nenhuma arte criada,
Nenhuma política destinada para eles!
Como eu vos amo a todos, porque sois assim,
Nem imorais de tão baixos que sois, nem bons nem maus,
Inatingíveis por todos os progressos,
Fauna maravilhosa do fundo do mar da vida!

(Na nora do quintal da minha casa
O burro anda à roda, anda à roda,
E o mistério do mundo é do tamanho disto.
Limpa o suor com o braço, trabalhador descontente.
A luz do sol abafa o silêncio das esferas
E havemos todos de morrer,
Ó pinheirais sombrios ao crepúsculo,
Pinheirais onde a minha infância era outra coisa
Do que eu sou hoje...)

Mas, ah outra vez a raiva mecânica constante!
Outra vez a obsessão movimentada dos ómnibus.
E outra vez a fúria de estar indo ao mesmo tempo dentro de todos os comboios
De todas as partes do mundo,
De estar dizendo adeus de bordo de todos os navios,
Que a estas horas estão levantando ferro ou afastando-se das docas.
Ó ferro, ó aço, ó alumínio, ó chapas de ferro ondulado!
Ó cais, ó portos, ó comboios, ó guindastes, ó rebocadores!

Eh-lá grandes desastres de comboios!
Eh-lá desabamentos de galerias de minas!
Eh-lá naufrágios deliciosos dos grandes transatlânticos!
Eh-lá-hô revoluções aqui, ali, acolá,
Alterações de constituições, guerras, tratados, invasões,
Ruído, injustiças, violências, e talvez para breve o fim,
A grande invasão dos bárbaros amarelos pela Europa,
E outro Sol no novo Horizonte!

Que importa tudo isto, mas que importa tudo isto
Ao fúlgido e rubro ruído contemporâneo,
Ao ruído cruel e delicioso da civilização de hoje?
Tudo isso apaga tudo, salvo o Momento,
O Momento de tronco nu e quente como um fogueiro,
O Momento estridentemente ruidoso e mecânico,
O Momento dinâmico passagem de todas as bacantes
Do ferro e do bronze e da bebedeira dos metais.

Eia comboios, eia pontes, eia hotéis à hora do jantar,
Eia aparelhos de todas as espécies, férreos, brutos, mínimos,
Instrumentos de precisão, aparelhos de triturar, de cavar,
Engenhos brocas, máquinas rotativas!

Eia! eia! eia!
Eia electricidade, nervos doentes da Matéria!
Eia telegrafia-sem-fios, simpatia metálica do Inconsciente!
Eia túneis, eia canais, Panamá, Kiel, Suez!
Eia todo o passado dentro do presente!
Eia todo o futuro já dentro de nós! eia!
Eia! eia! eia!
Frutos de ferro e útil da árvore-fábrica cosmopolita!
Eia! eia! eia! eia-hô-ô-ô!
Nem sei que existo para dentro. Giro, rodeio, engenho-me.
Engatam-me em todos os comboios.
Içam-me em todos os cais.
Giro dentro das hélices de todos os navios.
Eia! eia-hô! eia!
Eia! sou o calor mecânico e a electricidade!

Eia! e os rails e as casas de máquinas e a Europa!
Eia e hurrah por mim-tudo e tudo, máquinas a trabalhar, eia!

Galgar com tudo por cima de tudo! Hup-lá!

Hup-lá, hup-lá, hup-lá-hô, hup-lá!
Hé-la! He-hô! H-o-o-o-o!
Z-z-z-z-z-z-z-z-z-z-z-z!

Ah não ser eu toda a gente e toda a parte

«Londres, 1914 — Junho.»
Álvaro de Campos  «Dum livro chamado Arco do Triunfo, a publicar.»
(Retirado da Casa Fernando Pessoa, embora tenha a Revista.)

Confesso que não é dos meus poemas favoritos mas o autor merece esta homenagem.


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