Por mão amiga recebi notícias de Irene Lisboa evocada por Luísa Dacosta e por Paula Morão. Obrigada Maria João do blogue "O Falcão de Jade".
Após a leitura das notícias, lembrei-me de duas mulheres mais novas, mas ainda assim contemporâneas, que se notabilizaram seguindo a mesma escrita intimista: Clarice Lispector (1920-1977) e Maria Ondina Braga (1932-2003).
Com estilos de vida diferentes, pertencendo a gerações diferentes, a vida destas três mulheres cruza-se através da palavra portuguesa: solidão.
Ter-se-ão conhecido?
Nada sei sobre uma possível ligação. O mais provável é nem se terem conhecido.
Todavia, em locais dispersos, com realidades peculiares, as três mulheres têm, a meu ver, algo em comum. O que me fez refletir que em cada canto do mundo, sem que as pessoas se apercebam, a fonte da vida é a mesma, as energias são iguais, os anseios são os mesmos, não importa a religião, o poder político ou o poder económico. Quero com isto dizer que as sombras são as mesmas, todos temos uma caverna e é dela que partimos para traçar os dias.
IRENE LISBOA
Irene Lisboa , com 24 anos, fotografia retirada do
Quinzenário Literário:Educação Feminina, 1 de Abril, 1913, nº I
«...
Gostava de escrever com um fio de água.
um fio que nada traçasse
Fino e sem cor, medroso...»
Irene Lisboa
[Irene Lisboa]
Morreste em Novembro de 1958 e para mim tinhas nascido tão tarde! Só em 1956 - Lembras-te? Foi António Sérgio que nos apresentou, num concerto. (...) A natureza foi o teu espelho e exaltação. criaste-lhe uma alma, sentias a água a chorar, e o impossível corporizava-se, sob os teus olhos, na rapariga de pedra.
Luísa Dacosta, "Um Perfil e Uma Obra. Irene Lisboa in Vida mundial. Lisboa. Nº 1636 (16 Out. 1970), p. 41-52.
Segundo Paula Morão, Irene Lisboa no livro, o pouco e o muito, descreve a chuva violenta que cai lá fora ordenada em três linhas de fuga: o tema do isolamento (corolário da solidão); a metáfora da linguagem e a auto-análise, «eu que faço?», «eu que escrevo o quê?» e em «eu quem sou?».
Paula Mourão interliga a escritora com o intersecionismo modernista, nomeadamente, com Álvaro de Campos de "Tabacaria" pelo recurso comparativo e pelo tema da solidão; e no tema da chuva aproxima-a à "Chuva Oblíqua" ou de "Chove?" de Fernando Pessoa.; perfila-a na sombra de Cesário Verde de "Contrariedades"; e ainda, enquadra-a na escrita de Camilo Pessanha. Concluiu que era "interessante notar como em todos os casos se trata de poetas que estiveram à frente do seu tempo, suscitando problemas de avaliação crítica e de reconhecimento, como veio acontecer com Irene Lisboa".
Paula Morão, "Notas sobre o estilo de Irene Lisboa", Irene Lisboa: 1892-1958 [catálogo], pp.31-38, Lisboa: Biblioteca Nacional, 1992 .
CLARICE LISPECTOR
Carlos Scliarp (1920-2001), Retrato de Clarice Lispector, 1972.
Daqui
Apenas isso: chove e estou vendo a chuva. Que simplicidade. Nunca pensei que o mundo e eu chegássemos a esse ponto de trigo. A chuva cai não porque está precisando de mim, e eu olho a chuva não porque preciso dela. Mas nós estamos tão juntas como a água da chuva está ligada à chuva.
Clarice Lispector
ONDINA BRAGA
Maria Ondina Braga, Cortesia do Google
Chovia a potes. Muito pretendido, àquela hora, muito requisitado, o condutor: tlim-tlim! Grosseiro, o condutor? Dava-se-lhe um desconto. Pang-yau de manhã à noite a pedalar de costas curvadas, que ganhava o pobre que lhe sobrasse para cortesia? Elas pelo menos assim o entenderam, pulando uma atrás da outra para dentro do coche, rápidas, encharcadas, a abrigar-se, a enxugar o rosto molhado. Para onde quer ir?, perguntou então a professora da Escola Chinesa. Ora, para onde quero ir!... Num domingo de chuva em Macau tudo quanto se podia desejar era um sam-lun-ché, não era? Riram, radiantes, e não só por terem conseguido transporte como pelo encontro, pela convivência. Abotoavam as bandas do oleado que as cobria da cabeça aos pés. Diga-lhe que nos leve sem destino, queremos é matar o tempo!, propôs Ester. Sem destino? Xiao franzia o sobrolho. Não. Isso sem destino o homem não compreendia.
Maria Ondina Braga,
Nocturno em Macau. Lisboa:Editorial Caminho, 1991.
O vídeo clip é surreal e a meu ver comunga com a solidão, o fio condutor desta postagem